Ricardo Giuliani Neto

Toque de alvorada

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
2 min readMar 18, 2016

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Por Gustavo Machado

Nas duas madrugadas anteriores tinha sido assim: às três horas, alguém batia à porta do meu apartamento com alguma coisa pesada e interrompia uma série de sonhos absolutamente abstratos que vinham me acometendo. Eu saltava da cama, assustado, mas, coisa estranha, antes de me animar a qualquer reação, só pensava que aquela batida era forte demais para que estivessem usando os nós dos dedos. Ninguém tem dedos tão pesados. Daí, nas duas madrugadas anteriores, eu me esgueirava até a porta, silencioso como um gato, meus carpins gastos lustrando o sinteco encerado do parquet. Nossa, e como eu sentia frio nos pés. Meu apartamento parecia enorme, bem maior do que deveria ser, mas aquilo não me incomodava. Mesmo que eu passasse por quartos cujos interiores lembravam salas de aula da minha infância, alguns; ambientes das casas das minhas tias ou dos meus avós, em outros casos. Não sentia medo ou estranhamente nem mesmo quando passava por uma velha que, de costas para mim, pedalava uma máquina de costura. O importante eram as batidas que haviam me despertado. Quando finalmente chegava lá, na porta, espiava pelo olho-mágico e não enxergava nada além do corredor vazio, a porta do meu vizinho e seu capacho que repousava sobre os ladrilhos vermelhos e sextavados daquele piso démodé do meu prédio anos cinquenta. Ninguém. Nada. E, do nada, recomeçavam os sonhos de motivos cubistas, às vezes, ou lembrando desenhos de antigas aulas de geometria descritiva ou alguma outra disciplina matemática assombrada. Naquela terceira vez, porém, não era bem o nada, mas uma absoluta escuridão. Talvez não tivesse luz do lado de fora, talvez alguém houvesse vedado a lente. Fiquei tanto tempo com a testa colada à tinta plástica da porta que ela acabou colando, acho que pelo suor. Continuava não vendo nada, mas logo comecei a escutar um chiado constante, pra cima e pra baixo, como alguém respirando com a ajuda de aparelhos. Um chiado nojento. Parei de sentir o desconforto na testa, que foi substituído por uma abrupta dor que começava na garganta e ia descendo rumo à escuridão das minhas entranhas. Houve novas batidas, muito fortes, seguidas de uma colossal descarga elétrica que me fez ranger os dentes. Da eletricidade veio a luz. Tão forte que, sob ela, eu ficava mais cego do que antes, grudado no olho-mágico negro. O ruído subiu e desceu mais alto. Um bip curto. Outro longo. Outro curto. Está voltando. Temos pulso, alguém disse.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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