Um antigo grito dos bichos de abate

Da era pré-cristã até hoje, seguimos acorrentados a uma condição cíclica de estupidez em estado bruto, passando por todo tipo de barbárie

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readSep 4, 2015

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Por Gustavo Machado
Fotos de Adriana Franciosi

O sofrimento pode nos fazer maiores. Dá trabalho, mas pode. Vem daí a noção de sacrifício, tornar “sacro” pelo caminho do “ofício”. Mas deve haver um outro meio. Sinceramente, acho que sofrimento tem limite. Caso contrário, já teríamos sofrido bastante e estaríamos aptos a uma inédita e real renascença. Não devemos ter sofrido o bastante, pois insistimos em rastejar. “Leste os jornais hoje?”, uma voz me pergunta. Sim, li. E sinto um punho fechado a me atingir a boca do estômago.

Uma pitada de dor existencial convém ao ser humano. Revela verdades, dilui medos, robustece, faz crescer. Não é à toa que assim diz um clichê já meio esfarelado nas bordas: se não doer um pouquinho, não é psicanálise. Em “O mal-estar na cultura”, por exemplo, Sigmund Freud joga luz à incessante sobreposição de paradigmas morais e marcos civilizatórios que, empilhados, foram dando corpo aos ideais da felicidade humana. Às vezes, porém, só os espelhos do divã não bastam e se faz necessário um mergulho mais fundo. E mais sujo.

Encarar sem trucagens as próprias imperfeições individuais é um gesto para poucos. Quem não enlouquece de vez, se fortalece. Freud pode não nos curar dos nossos passados tortos, mas de certo nos oferece remédios bastantes para que os dotemos de novos significados. Ressignificar é preciso. Mas resolve?

Por mais que, há cerca de um século, homens e mulheres venham evoluindo em suas fragilidades e insuficiências mais íntimas e inconfessáveis por meio da conversa guiada (e, mais recentemente, com o auxílio luxuoso de alguma química), seguem repetindo as mesmas imbecilidades quando vistos coletivamente. Mais que comportamento de massa ou turba, há alguma deficiência germinal na condição humana que teima em nos arrastar às mesmas imbecilidades. Por exemplo, os flagelos bélicos, ditaduras, as torturas, os genocídios, a escravidão.

Da era pré-cristã a este santo ano de 2015, seguimos, de boa vontade, acorrentados a uma condição cíclica de estupidez em estado bruto. Passamos por todo tipo de barbárie: faxinas tribais, holocaustos, invasões, expedições punitivas, fuzilamentos coletivos, mutilações, campos de concentração, corridas atômicas, gulags e toda sorte de genocídios com fundamentação política, étnica, religiosa, econômica ou as quatro alternativas anteriores juntas.

Pode ser uma espécie de queda pela tirania, pelo exercício do horror, uma característica que nos une? Como uma doença da qual todos somos vítimas, na melhor das hipóteses com graus distintos de sintoma? Pode ser. E não consigo evitar que me venham à memória Aldous Huxley e sua “teoria do veneno gregário”. Não, não é isso. Penso, mas logo a coloco de lado por me parecer frágil e algo datada. Daí volto a Freud e, ainda insatisfeito com ele, mergulho em seus antecessores William Shakespeare e o levemente mais antigo Sófocles. Agora sim, está tudo ali. Só que preciso ser mais explícito. Sou como um homem traído que precisa saber tudo, tudo, tudo. Precisa saber sob pena de sua imaginação tecer cenários ainda mais cruéis do que a crueza da realidade.

Por alguma associação de ideias que talvez (com o perdão de mais um clichê embolorado) Freud explique, estou passando os olhos pelas lombadas de alguns dos meus livros favoritos. Casualmente ou por ato-falho, caio numa prateleira que, de mim a mim mesmo, batizei como a dos pacifistas. Mesmo que sejam romances de guerra. Numa ordem que talvez só eu entenda, estão ali romances de Romain Gary, Ernest Hemingway, Ismail Kadaré, Irène Némirovsky, Martin Amis, Erich Maria Remarque, Milan Kundera, Stendhal e Joseph Roth, entre tantos outros.

Volto, novamente, a Freud e lembro que minha mãe leu quase todos estes romances, apesar de preferir literatura mais leve. A cada vez que terminava um deles, dizia “pobre dessa gente, vivendo pior que bichos de abate”. E lembro ter vindo dela o comentário mais marcante que escutei sobre a foto do menino sírio, morto, carregado por um soldado. Por telefone, durante a tarde, ela me dissera “leste os jornais? Pobre dessa gente, vivendo pior que bichos de abate”.

Volto aos jornais e revejo o menininho. A dor pungente do soldado que o carrega, os pezinhos numa inclinação que a morte e as ondas carinhosas da beira da praia fizeram levemente assimétrica. Um grito não me sai pela garganta que se fecha como se numa gravata de carne que me sufoca. A culpa pode ser da crise econômica transcontinental, dos conflitos enfrentados pelos sírios. Mas é muito, muitíssimo mais minha. É uma medonha obra de todos nós que carregamos em nossa condição comum o mesmo grito desses bichos de abate. Nós, que guardamos nas entranhas dois ou três demônios que precedem a própria humanidade e que, talvez justamente por isso, jamais serão compreendidos e domados. Nós, que tentamos não enxergar esta nossa doença antiga que nos faz tão convicta e perversamente estúpidos…

Nós, que, com todas as oportunidades de evolução, teimamos em habitar não um mundo, mas uma superpovoada zona de abate. Andamos em círculos, forçando gritos que nunca saem. Gritemos juntos. Gritemos com força e vontade. Das nossas bocas escancaradas e contorcidas de dor, grito algum irá soar.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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