Os insensatos conquistam grandezas.

Uma ode aos insensatos

Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
10 min readSep 1, 2016

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Eu admiro as pessoas insensatas. Aquelas que não possuem noção nenhuma, seja de razão ou de ridículo, e estabelecem objetivos muito além das próprias capacidades. Elas estão por todos os lugares, desde o jovem imberbe que deseja conquistar o coração de uma atriz de cinema até a moça que sonha em ganhar não só o Nobel da Literatura, mas também o Oscar, o Grammy e o Pulitzer. Em geral, as pessoas insensatas são jovens, e ainda não tiveram o necessário choque de realidade que somente a vida proporciona, e com requintes de crueldade, pois cada opção que tomamos necessariamente deixa um rastro de sonhos e de possibilidades destruídas no seu rastro.

As pessoas insensatas não raro tentam abocanhar mais do que a capacidade da sua própria boca. São vorazes, insatisfeitas, chegam às raias da insanidade. Elas são admiráveis, não pela tarefa de Hércules a que se dedicam, mas por imaginarem o impossível e tentarem realizá-lo. Um ditado que gosto muito: “Mirar a lua, acertar as estrelas”. Mesmo quando se erra o objetivo maior, pode-se acertar outros secundários. Ninguém acorda pensando em ser uma pessoa medíocre; todos sonham ser maiores do que são. Deixar o próprio nome gravado em pedra, não rabiscado na areia.

Sempre que vejo algum projeto grandiloquente fadado à impossibilidade de ser concretizado (ao menos em um mundo real), recordo da tarefa extraordinária a que se propôs o compositor alemão Bernd Alois Zimmermann. Em 1969, ele decidiu fazer a obra musical que definiria toda a sua geração, os nascidos entre 1920 e 1970 na Alemanha Ocidental. Algumas pessoas acordam pensando no que comerão no almoço, outras querendo mudar o mundo, e a intenção declarada do compositor era concentrar um mundo polifônico e multifacetado dentro de uma única música.

Com tal objetivo em mente, Zimmermann compôs o “Requiem para um Jovem Poeta” (Requiem für einen jungen Dichter), uma obra de dimensões portentosas. Para se ter uma ideia, o Requiem necessitava de uma orquestra completa, de um narrador, de um solo soprano, de um barítono, de três coros, de uma orquestra de instrumentistas de jazz e outra de instrumentos eletrônicos — todos tocando simultaneamente. Pela sua ousadia estilística, a obra foi considerada uma “polifonia”, mesclando partes do século XX tão díspares quanto as linhas iniciais de “Hey Jude”, dos Beatles, com trechos de “Tristão”, de Richard Wagner, das sinfonias de Beethoven, de Milhaud (“A criação do mundo”) e de Oliver Messiaen (“A ascensão”), sem esquecer a onipresença do jazz, que a tudo acompanha, e mais as batidas eletrônicas fornecendo o necessário compasso.

Se no aspecto musical o “Requiem para um Jovem Poeta” era complexo, a letra era ainda mais ambiciosa. No princípio, Zimmermann pretendia inserir somente textos escritos por poetas que cometeram suicídio, tanto que os primeiros a aparecerem são Vladimir Maiakóvski, Eugene Essenin e Konrad Bayer. No entanto, com a evolução da ideia, o compositor decidiu incluir as vozes do seu tempo e, assim, surgiram falas de Churchill, de Chamberlain, de Stalin, de von Ribbentrop, de Goebbels, de Mao Tsé-Tung e de Hitler. Trechos de Albert Camus, de Ezra Pound, de Schwitters e de Sandor Weores tornaram-se parte da música, assim como o monólogo de Molly Bloom conforme escrito por James Joyce em “Ulisses” sucede um discurso do Papa João Paulo XXIII, que, por sua vez, é antecedido por uma página de “Investigações filosóficas” de Wittgenstein. Toda esta multiplicidade de ideias é coordenada pelo grande tema do “Requiem para um Jovem Poeta”, providenciado por um verso de Konrad Bayer: “O que podemos esperar? Não há nada que nos aguarde, a não ser a morte.”

Para uma ideia tão megalomaníaca, a interpretação era essencial. Sequer existia um lugar apropriado para comportar múltiplas orquestras em palcos diferentes e, para executar a contento a sua obra, o compositor alemão sugeriu a construção de um espaço esférico, através do qual o público poderia circular livremente durante a performance, recebendo os estímulos acústicos e óticos vindos de todos os lados.

Ao final da partitura do “Requiem”, Bernd Alois Zimmermann sofreu um grave esgotamento mental e foi internado às pressas em uma clínica para doenças nervosas, na qual permaneceu alguns meses. Ao sair, entregou-se para uma nova obra, mas a pressão era grande demais e ele cometeu suicídio em 1970. Alguns acreditam que isso aconteceu em razão dele ainda sofrer o impacto da exposição a armas químicas durante a Segunda Guerra Mundial, outros pensam que um quadro de depressão severa que o afligiu por muito tempo foi decisivo, mas não foram poucos os que culparam a composição de uma obra tão ambiciosa quanto o “Requiem para um Jovem Poeta”.

A intenção inglória de Zimmermann — representar toda a sua geração — era gigantesca demais para um discurso único. Não surpreende que seja enlouquecedor, mas a intensidade do desafio é singular: o compositor não teve medo de soar pomposo, ridículo ou grandiloquente. Ao contrário, ele tentou atingir os píncaros da arte, mesmo correndo o risco de se quebrar no processo.

De certa maneira, a intenção de Zimmermann lembra muito um famoso conto de Jorge Luiz Borges, “O rigor da ciência”, presente no livro “O fazedor” e que, por suas parcas dimensões, pode ser transcrito aqui:

“…Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal Perfeição que o Mapa duma só Província ocupava toda uma Cidade, e o Mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele. Menos Apegadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse extenso Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste subsistem despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos. Em todo País não resta outra relíquia das Disciplinas Geográficas. (Suárez Miranda: Viagens de Varões Prudentes, livro quarto, cap. XIV, 1658.)”

Esse pequeno texto borgeano foi ampliado por Umberto Eco em “O segundo diário mínimo”, com o título “Da impossibilidade de construir a carta do Império em escala um por um”. Na ampliação da ideia de Borges, fica claro o seguinte: no momento exato em que se pretende fazer algo muito gigantesco, o objeto buscado já se torna inalcançável, pois traçar um limite é considerar que exista algo que excede dito alcance. Por mais amplo que seja o desejo de fazer algo inesquecível, assim que ele é traçado, já se torna comum e, em breve, ultrapassável. Estamos em uma corrida que nunca ganharemos, metidos em um eterno paradoxo de Zenão: nunca vamos ganhar da tartaruga.

Jorge Luis Borges, por Luís Silva

Mas o que não nos impede de ser ousados, como Alexander Pope. Desde seus sete anos de idade, o poeta inglês começou a fazer versos com uma facilidade que encantava e desconcertava os membros da sua família, o que o levou a afirmar “Eu ciciava aos borbotões, por que borbotões vinham.”

Quando tinha 13 anos de idade, Pope foi expulso de Tyword School. Motivo: escreveu uma sátira extremamente devastadora sobre um professor. Quando tinha 14 anos, escreveu uma peça ampliando temas da “Ilíada” de Homero, e cooptou seus vizinhos e o o jardineiro da casa para interpretar dita peça. Quando tinha 15 anos, Samuel Johnson, seu futuro biógrafo, disse que Alexander Pope já escrevera panegíricos de todos os reis da Europa, além de um poema épico, uma tragédia e uma comédia.

Quando tinha 16 anos, Pope decidiu escrever o Grande Épico Inglês.

Não era uma ideia tão original. Boa parte dos escritores ingleses eram fascinados pela ideia de escrever o Grande Épico Inglês, uma obra que, ao estilo da “Eneida”, de Virgílio, de “Dom Quixote”, de Cervantes, e de “Os Lusíadas”, de Camões , servisse de base para toda a produção literária da Inglaterra, juntando economia, política, sociologia, comércio, história e literatura em uma única narrativa. Muitos escritores gigantes tentaram chegar a esse Éden, entre os quais Coleridge e Milton. Assim, no auge dos seus 16 anos, Alexander Pope decidiu fazer aquilo que outros monstros da literatura universal tinham tentado sem sucesso.

O poeta inglês escreveu “Alcânder”, obra na qual, segundo o depoimento que deixou no seu diário, pretendia “reunir todas as belezas dos grandes escritores épicos numa só peça. Havia o estilo de Milton numa parte, o de Cowley em outra, aqui o estilo de Spenser imitado, e ali o de Estácio, aqui Homero e Virgílio, e ali Ovídio e Cláudio.” Não chegou até nossos tempos: os originais de “Alcânder” foram queimados pelo bispo de Rochester, Francis Atterbury, que considerou a obra do jovem poeta muito sediciosa e correndo o risco de gerar consequências políticas indesejáveis.

Quando tinha 19 anos, Pope tentou novamente escrever o Grande Épico Inglês, dessa feita tratando das reformas agrárias feitas pelos irmãos Graco na Roma Antiga. Não temos conhecimento dessa obra, pois foi o próprio autor quem a destruiu, para se lançar em um novo projeto com a qual pretendia atingir o Nirvana da literatura inglesa: “A Tolíada”.

O trabalho foi concluído quando Alexander Pope tinha 40 anos de idade. O poeta já era um escritor calejado, e fez uma obra que se precavia antecipadamente das críticas. Em suma, jogou bonito para encantar a plateia. Logo no início, ele se referiu a “Margites”, a famosa comédia criada por Homero e que não chegou viva aos nossos tempos (a não ser em citações descuidadas feitas por Aristóteles na sua “Arte poética”), querendo mostrar que a sua obra se filiava a essa tradição satírica.

O problema de “A Tolíada” — e que a levou a ser reprovada por todos os críticos sem exceção — foi justamente o fato de Pope fazer uma sátira tratando de escritores, rabiscadores, poetas, críticos e editores que o haviam atacado alguma vez. Mesmo anunciando que era uma sátira, ou seja, que não devia ser lida a sério, o fenômeno contrário aconteceu: os críticos acharam que ele dava o nome de sátira para poder dizer o que pensava de forma impune. Lendo hoje o trabalho de Pope, percebe-se que, além de atacar toda a sociedade literária do seu período, ele ainda investiu contra a própria cultura da qual era contemporâneo.

No fim da vida, Alexander Pope tentou uma última vez atingir o Grande Épico Inglês. Em uma longa carta enviada para o seu editor, anunciou a escritura de um épico ao qual dera o título provisório de “Bruto”. Não suficiente, mandou uma descrição detalhada da história: “Bruto” se passaria 66 anos após a queda de Tróia. Bruto seria o neto de Enéias, e que possuiria uma forma extremamente peculiar de conceber a sociedade, considerando-a mais justa e equânime.

Não tendo muito espaço para desenvolver suas ideias de liberdade, Bruto resolve juntar um grupo de troianos sobreviventes e se refugiar na terra indicada por um oráculo egípcio, “um lugar de clima igualmente livre da frágil delicadeza e suavidade dos climas meridionais e da ferocidade e selvageria do Norte”, uma ilha que, de acordo com as indicações geográficas, só poderia ser a Inglaterra. Não escapará, aos leitores atentos, a circunstância dessa história ser semelhante a outro famoso épico, “Eneida”, de Virgílio, que deu origem à fundação mitológica de Roma.

Após contar todas as peripécias da viagem, que incluem batalhas contra criaturas fantásticas, sonhos em que Bruto recebeu conselhos de Hércules, encontros com criaturas muito semelhantes aos anjos caídos de “O paraíso perdido” de Milton, chegada nas Ilhas Afortunadas (um local mágico que quase consegue reter os soldados fugidos) e o encontro com um filho de Ulisses em Lisboa, os troianos enfim chegam na Inglaterra e estabelecem contatos com os druidas, os quais imploram para que os recém chegados destruam dois gigantes, Goguemagogue e Corineu. Um grupo é montado para enfrentar os gigantes, e cada homem escolhido integrá-lo possui uma característica que o destaca, como “o velho e cauteloso companheiro”, “o soldado que só pensa na pilhagem”, “o herói cruel e sanguinário”, “o guerreiro regido pelos impulsos”.

Pope tinha essa ideia perfeitamente delineada, pronta para se transformar no Grande Épico Inglês e — imperioso admitir — é uma história que reúne todos os elementos dignos de figurarem em um épico inesquecível.

Era o momento perfeito para atingir o seu sonho e, assim, Alexander Pope enfim começou a realizar o seu sonho… e morreu, vitimado pela febre. Além de todo o esboço da história, deixou somente as primeiras oito linhas, que prometiam ser memoráveis:

“O chefe paciente, que depois de muito labor chegou
Às praias da Bretanha e trouxe com ele deuses generosos
Artes, armas e honra a seus filhos antigos;
Filha da memória! Lembrança de um
Tempo passado; e eu com a glória dos bretões me animei
Eu, longe de cuidado mesquinho ou de canção menor,
Arrebatei para a montanha sagrada da baía imaculada,
O poeta do meu país, para recordar sua fama.”

A vida tem dessas coisas, já diria a música. Quanto mais insensato o ser humano, quanto maior a sua ambição, mais curta se torna a sua vida, e a morte sempre chega para todos, atalhando projetos. Assim como Zimmermann criou um Requiem de proporções gigantescas ou como Pope passou a vida inteira tentando escrever um único e decisivo livro, chegando a ele somente na véspera da morte, não é o produto final que acaba nos definindo, mas o percurso que realizamos caçando a sombra da perfeição inatingível.

Então, sejamos insensatos, sim, tenhamos projetos grandiloquentes e inalcançáveis, pois é a única maneira que temos de sair da caixa das pessoas comuns, aquela em que a sociedade insiste em nos encaixar desde que nascemos. Aos insensatos pertence tanto a glória das vitórias únicas quanto a fragorosa derrota dos que caem lutando, e existe honra em lutar contra aquilo que Camus disse ser a nossa maior tentação: não ser nada.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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