V — Por dez anos de juventude
Por Gustavo Machado
Não ficamos fora só no dia seguinte. Foram mais dois dias de luxúria e imprudência, sei lá a troco de qual desculpa. Acho que alguma coisa a ver com reparos na casa que tinham levado mais tempo que o previsto. Agora, à tardinha, enquanto dirigia de volta, brincando de piloto nas curvas da descida da Serra, fiquei pensando numa porção de coisas sobre as quais havia conversado com dona Clara, que agora eu só conseguia chamar de Clara, mesmo. Ela dormia no banco do carona, ressonando de leve, com a cabeça achatada contra a janela e a mão estacionada na minha coxa direita. Tinha entrado no carro queixando-se de dores, pequenos hematomas e assaduras. Você me comeu muito bem, sabia? Bem até demais, foi a última coisa que ela disse antes de praticamente desmaiar aos primeiros balanços do Jaguar. Então esse negócio de ela ser rica de família era pura mentira, eu falei a mim mesmo, meio em voz alta. Velha vende menina pra homem rico, só isso, a coisa mais velha do mundo. Eu quero tomar um café, Clara disparou ao abrir os olhos, se espreguiçando, os braços erguidos, torcendo o pescoço, toda ela exalando aquele cheiro hipnótico que ela tinha. Reduzi um quilômetro depois e embiquei o carro na direção de um chalé descascado que oferecia, num letreiro majoritariamente ocupado pela marca da Coca-Cola, CAFÉ PASTEL LINGUIÇA QUEIJO VINHO CASEIRO PÃES OVOS DA COLÔNIA PINHÃO LENHA PELEGOS ANTIGUIDADES. Os pneus largos do jaguar moeram sonoramente as britas úmidas. Logo estávamos acomodados em torno de uma mesinha retangular, perto da janela, bebendo café preto escaldante e com um leve gosto de queimado. Detesto café requentado, disse-me Clara, empurrando sua caneca para o lado e pedindo um chocolate quente. Dei uma boa olhada no lugar. Uma miscelânea de produtos coloniais se misturava a bugigangas e artesanatos e lembrancinhas. Uma ideia vaga começava a tomar corpo na minha cabeça atordoada enquanto Clara me contava sobre uma amiga que tinha descoberto, aos quarenta anos, que gostava de mulher. Uma raposa empalhada, fixada sobre uma base de madeira que parecia pesada, segurava a porta que levava ao aposento secundário. Que é que tem depois daquela porta?, eu perguntei ao homem gordo de bochechas rosadas que trazia o chocolate quente de Clara e recolhia a caneca de café que ela abandonara, quase intacta. As antiguidades, falou o gordo, fique à vontade pra dar uma olhada. Fomos até aquela sala dos fundos, Clara carregando seu chocolate, as mãos delicadas e frias agarrando a caneca alta pra melhor absorver o calor. Lá, o silêncio era mais pesado. O cheiro de mofo também. Havia prateleiras com antigos ferros de passar, arreios, pentes de osso, trombones, rádios, brinquedos de lata, telefones, gaiolas, caixinhas de música, chapéus, facas, copos de cristal, óculos, tamancos de madeira, jogos de dominó, máquinas de costura, cinzeiros, enciclopédias em alemão e italiano, bonecas com cabeça de louça, maçanetas, utensílios de cozinha, baldes, fotografias de família aprisionadas em molduras ovais ou elípticas. Havia também uns quantos outros bichos empalhados. Você gosta dessas velharias?, eu perguntei a Clara. Ela riu e passou os dedos já quentinhos na minha nuca. Sabe no que é que eu estou pensando, meu amor?, ela falou, olhando para um lugar aparentemente de destaque que ficava na parede mais próxima à janela central da peça. Não, não sei. Estou pensando naquela nossa conversa de você querer me comprar do Henry, ou me trocar por alguma coisa que ele não possa ter nem com todo o dinheiro do mundo. E sabe o que vai ser? Não, não sei, eu disse, não gostando nada daquela conversa nem do tom de voz de Clara. Você vai dar a ele dez anos de vida. Vai dar um pouquinho da sua virilidade, entende? Não, não entendo, eu falei. Espiei a reprodução barata de uma pintura que mostrava caçadores repousando depois de alguma carnificina. Depois, eu e Clara ficamos um pouco em silêncio, parados embaixo de duas espingardas de caça muito antigas, bonitas e letais. Estão em perfeita ordem, disse o dono do lugar, chegando silencioso como um gato doméstico e esboçando um sorriso que podia significar dez mil coisas. E ficou ali. Agora, éramos três sob as armas.
**
Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.