VERME

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readFeb 3, 2017

Por Carina Luft

1981

A garoa caía desde a madrugada e o vento espalhava-se sobre Gassner. Embora ainda fosse outono, o frio invadia a cidade. Supunha-se que o inverno chegaria mais cedo. As lâmpadas apagavam pouco a pouco e o cinza-escuro do céu cedia espaço a um cinza-claro; amanhecia. Fernão Weber estacionou sua Brasília azul 76 em frente à DP, baixou o pino das portas e saiu a passos largos protegendo-se da chuva com uma pasta de couro. Olhou para trás e voltou para certificar-se de que as portas estavam trancadas, incluindo o porta-malas. Segurando a pasta sobre a cabeça, caminhou de volta em direção ao prédio. Ao colocar o pé direito na calçada, escorregou num filete de limo, reequilibrou-se e resmungou olhando para o chão; em seguida, entrou pela porta lateral percorrendo o mesmo trajeto de todos os dias. Cumprimentou os parceiros do plantão e seguiu para sua sala, um espaço pequeno com uma mesa de madeira manchada pela circunferência de copos úmidos, duas cadeiras azuis desbotadas e uma estante de aço cinza. No corredor, encontrou Juarez, um colega detetive, jovem como ele e também aspirante a delegado, um sujeito gordo, com cabelos ruivos e mal aparados. As bochechas grandes e rosadas ultrapassavam a linha normal do rosto, cedendo-lhe uma expressão simpática, características que sustentavam o apelido: Polaco. Com jeito simples de falar, contava a todos que suas investigações recebiam o mesmo trato que a obra de um escultor, pois partia de um acontecimento bruto, sem muitas pistas, e ia esculpindo, esculpindo e esculpindo até aparecerem os detalhes, eles davam forma aos crimes. Já o Weber, aquele escroto, diz que todo investigador precisa ser um cupim, corroer o trajeto; ser um super decompositor, alimentar-se de coisas mortas, cadáveres e excrementos, mas eu, eu prefiro trabalhar feito artista, não feito cupim, alardeava nas rodas de bate-papo ao soltar o copo na mesa depois de um suave arroto, erguendo os ombros num quase soluço, pedindo mais uma cerveja.
Fernão Weber era o oposto de Polaco. Magro, alto, moreno, sobrancelhas ralas, rosto redondo com uma barba espessa, descuidada, que lhe dava um charme especial, pois escondia os lábios finos e as imperfeições da pele. Comum entre eles, a idade de vinte e um anos, a astúcia e as habilidades iguais às de uma raposa, pois reconheciam as armadilhas e as artimanhas para atingirem o alvo. A diferença aparecia na forma como tratavam os casos, Polaco agia dentro da lei; Weber, não: comportava-se como um caçador oportunista sempre atento às conversas de corredor, aos processos, investigações; às opiniões dos mais experientes. Depois reunia as ferramentas e, como um militar, aprimorava a estratégia.

— Opa! — disse Weber ao cruzar com Polaco. — Quero falar contigo, cara!
— Sobre?
— Aquela investigação.
— Dos carros roubados?
— É.
— Vamos ali — Polaco fez um sinal com o rosto indicando uma sala.
— E aí? — insistiu Weber ao fechar a porta.
— Olha, acho que estamos na reta final.
— O que tá rolando?
— Sabe aquela revenda de peças automotivas lá do centro?
— Qual?
— Aquela com a fachada azul.
— Sei.
— Dei uma batida lá e encontrei peças de carros, placas, chassis e documentos adulterados. Chequei no departamento de trânsito, pelo menos seis foram de carros furtados recentemente.
— Cacete!
Polaco sentou-se atrás da escrivaninha.
— A loja é apenas uma peça de um esquema muito maior. Tu sabia que o proprietário é também dono de um ferro-velho?
Weber encarava Polaco em silêncio.
— Ele é mecânico, tem um desmanche na Vila Municipal e a loja no centro. É um dos receptores.
— O Oliveira sabe disso?
— Não.
O som do telefone interrompeu a conversa. Do outro lado, Oliveira, o delegado, chamava os dois à sua sala.
— Então, Juarez? — perguntou enquanto mexia nos papéis sobre a mesa. O que me conta da diligência?
— Não tenho dúvidas, a loja é uma peça do esquema e o mecânico é o chefe da quadrilha.
— E o nome dele?
— Rapel.
— E o próximo passo? — perguntou ao franzir o cenho.
— Descobrir o barracão. Uma denúncia anônima, ontem, me disse que fica na Vila Municipal.
Oliveira virou-se para Weber, os dois se comunicaram com o olhar. Enquanto Juarez discorria detalhes da investigação, Weber se distanciou, foi até sua sala e ligou.
— Rapel?
— Fala aí, doutor.
— Acabaram de descobrir o esquema. A operação foi armada e o barraco tá na mira. O negócio é o seguinte: tira as pistas de lá, não tem mais como segurar o tranco aqui. Outra coisa, deixa uma pasta com a minha parte no lugar de sempre, este favor que tô te fazendo, malandro, merece um extra.

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Capítulo de abertura do romance policial VERME, de Carina Luft.

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