Kerstin Kuntze

VI — No sono dos mortos

Gustavo Machado

Editora Dublinense
5 min readMay 13, 2016

--

Negociamos o casal de espingardas pelo dinheiro correspondente a uns três salários dos meus. O gordo, dono do lugar, vendeu como objetos de decoração. Mas garantiu que logo elas estariam funcionando. Ele se chamava Dino; eu tinha um cartão dele queimando dentro do meu bolso enquanto fazia o restante da viagem. Dino mandaria as espingardas-relíquia a um armeiro local e eu poderia apanhá-las em uma semana, talvez dez dias. Que é que adianta umas belezas assim, calibre doze, gatilhos duplos, cabos em madeira nobre, se a gente não puder dar uns tiros, né?, dissera-nos Dino, enquanto Clara digitava na maquineta a senha do seu cartão de crédito. O armeiro custaria mais uma boa soma. Clara terminou de me explicar seu plano quando já chegávamos ao último trecho, o mais feio do percurso, que varava três cidades-dormitório. Primeiro, ela ia presentear Henry com uma semana de férias numa área logo depois da fronteira onde a caça de qualquer coisa que se mexia era absolutamente tolerada, se não legal. Eu iria acompanhá-lo, dirigindo uma caminhonete fora de estrada especialmente alugada pra isso, as espingardas restauradas iriam com a gente. No fim da excursão, aconteceria um terrível acidente de caça, será que eu estava acompanhando? Eu sou ignorante mas não sou burro, disse a ela, que pediu desculpas, chegou bem perto do meu rosto e mordeu a cartilagem da minha orelha direita tão forte que saiu um pouco de sangue, felizmente do lado de dentro, o lado que fica quase encostando na base do crânio. Só não sei o que eu vou ganhar com isso, falei. No mínimo, você vai me comer todos os dias, já pensou? Minha orelha doía pra burro e, naquela hora, não achei que valesse a pena matar um homem tão bom como Dr. Henry só pra ficar comendo a mulher dele. Aliás, pra continuar comendo. Seguimos bem quietos o resto da viagem. Clara tinha os olhos vidrados, parecia ansiosa, muito feliz, quase eufórica. Passava pouca coisa do meio da tarde quando a deixei em casa e liguei pra clínica dizendo que avisassem Dr. Henry que eu tinha chegado na cidade. Ele quer alguma coisa comigo? A secretária disse que eu esperasse na linha. Fiquei escutando uma música clássica muito chata por um tempão, até que ela voltou e disse que o Dr. Henry tinha mandado me liberar no resto do dia, que eu devia estar cansado, precisando dormir. Era mesmo um homem bom, Dr. Henry, sei lá de que jeito eu conseguia ser tão filho da puta, o pior filho da puta da face da Terra, francamente. Por que será que eu estava me metendo naquilo, afinal? Não estava cansado, coisa nenhuma. Estava era cheio de hematomas e chupões e com o pau todo esfolado, por causa da mulher dele, do Dr. Henry, pobre homem. Combinei o horário de apanhá-lo no dia seguinte e fui embora com o Jaguar que eu deixava num posto de combustível, perto de casa. Fiz um itinerário longo, rodando com bem devagarinho e pensando na vida, com a falta de pressa dos homens muito ricos. Guardei o carro. Já era noite quanto passei caminhando pela frente do restaurante Dois Irmãos, senti o cheiro dos bifes feitos pela Isabel, a dona, e resolvi entrar. Pedi filé a pé e uma Serra Malte. O movimento ia mal. Isabel sentou-se ao meu lado quando me trouxe a comida, aquele bifão dourado que dava pra bem pra dois pedreiros esfomeados, mas que eu sempre comia sozinho porque sempre fui glutão, cada um com seus pecados. Tô com saudade de ver as suas facas, disse Isabel uma morena que me dizia ter quarenta e sete anos, levemente acima do peso, com quem eu fodia de vez em quando. São punhais, eu corrigi. Eu vou fechar às dez, ela disse, lixando as unhas. Falei que estava cansado e que não podia esperar tanto. Então ela deu um jeito de entregar o restaurantezinho para os três empregados senegaleses que trabalhavam pra ela pela comida e pelo abrigo no porão, e estava pronta pra ir embora comigo quando engoli a última garfada do meu prato. Caminhamos aquela última quadra que havia antes do meu apartamento. Isabel tentou me beijar enquanto subíamos os dois lances de escada, mas ela fedia a fritura e inventei uma desculpa qualquer. Tomei um banho rápido, pra tirar o cheiro de rua, e sugeri que ela fizesse o mesmo enquanto eu vestia umas cuecas limpas. Isabel gostou da ideia e foi pro chuveiro cantando uma música do Guilherme Arantes. O banho dela foi bem mais rápido que o meu, mas deu certo: quando saiu, eu só sentia cheiro de sabonete Lux. As mulheres pobres fodem diferente; não sei se melhor, mas com um deleite muito mais intenso, eu sempre escutei isso de amigos mais velhos, e era a mais pura verdade. Pelas onze horas, Isabel foi à cozinha e voltou com uma garrava grande de cerveja que dividimos bebendo direto no gargalo. É a sua patroa que tá deixando você cheio de machucados?, ela perguntou, passando os dedos meio ásperos nas marcas que Clara tinha deixado. Falei pra ela não se meter nos meus assuntos. Isabel falou que queria dormir comigo. Mas eu disse que precisava acordar cedo, que o meu patrão chegava cedo na clínica dele. Você não cansa de ser um fodido assim, um empregadinho, vivendo pelo que os outros querem que você viva?, ela me disse, provocativa, tentando enganchar aquela pecinha do sutiã que eu só sabia abrir. Não pense que você vai se dar bem com essa gente, essa partida é de jogo jogado, meu amor, ela falou. Arrastei Isabel até a saída ainda meio pelada, mesmo. Me leva em casa com o carrão do doutor… leva, ela disse, gargalhando, enquanto eu fechava a porta do apartamento. Voltei pra cama sem escovar os dentes e dormi um sono sem sonhos. Dormi o sono dos mortos.

Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

--

--

Editora Dublinense

A Editora Dublinense é um projeto editorial eternamente em construção. Organizada em três selos: Dublinense, Não Editora e Terceiro Selo.