Alla Mirovskaya

Vida doméstica

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readMar 4, 2016

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Por Gustavo Machado

Quando chego ao elevador, já não tenho certeza se fechei a porta. Retorno, enfio a chave e vejo que sim, tudo certo. Então volto ao corredor, chamo de novo o elevador, entro, desço. Na portaria, vejo o porteiro que leva aos lábios uma caneca com a logotipo de um banco estampado. Deve ser uma caneca encardida do lado de dentro, eu penso. Ele está tentando me dar bom dia. Eu chego a abrir os lábios com a intenção de responder mas, assustado, desconfio não ter desligado a cafeteira elétrica. Dou as costas ao porteiro de maneira um tanto rude, penso comigo mesmo. Chamo o elevador, aperto no botão onze, subo. Subo, subo. Plim. Uma japonesa peituda que mora no sétimo andar interrompe meu caminho. A porta de correr se abre e ela pergunta “tá subindo?”, eu digo que sim e ela entra do mesmo jeito, “então eu subo pra passear com você e depois desço, hahahah”. Tem uma nuvem de perfume muito doce em volta dela, que sorri, muito amável, e puxa assunto com alguma pergunta retórica sobre a chuva. Não tenho mais visto a sua mulher, ela comenta, em seguida. Acho que olho fixamente pros peitos da japonesa, porque ela os empina de forma ostensiva e faz um sorriso ainda mais amável. O visor digital marca o décimo primeiro andar, a porta corre, eu digo “até logo” e desembarco com o perfume muito doce ainda colado às paredes internas das minhas narinas. Enfio a chave, giro, agarro a maçaneta, entro, piso nas dezenas de correspondências que foram enfiadas por baixo da porta, nas últimas semanas, fecho a porta atrás de mim e ando rapidamente até a cozinha. Sobre o balcão da pia, a cafeteira está bem quietinha. Toco na jarra refratária: fria. Luz vermelha desligada. Tudo certo, digo a mim mesmo, em voz alta, e ao passar a língua pela parte interna dos meus dentes incisivos eu os sinto discretamente ásperos. Melhor escovar mais uma vez. Entro no banheiro, paro em frente ao espelho e arreganho os dentes num sorriso maníaco. Minha cara não está boa. Não está nada boa. Escovo, passo fio dental. Escovo mais uma vez porque fico com gosto de sangue na boca depois de ter exagerado na fricção do fio, minhas gengivas sempre foram muito sensíveis, mas acho que estão piorando. Minha mulher sempre me diz que preciso procurar um especialista, que isso não é normal. E não deve ser normal, mesmo. Não temos conversado muito nos últimos tempos, eu e minha mulher, penso comigo mesmo, enquanto limpo as unhas com um grampo de cabelo e depois esfrego em os dedos e as mãos com o sabonete desinfetante cuja embalagem garante o extermínio de 99% dos germes. Não temos conversado muito, eu e minha mulher, penso de novo, esfregando um esguicho de álcool nas mãos, não temos conversado muito desde o dia em que ela me propôs uma conversa definitiva sobre separação. Parece que faz tempo, muito tempo, mas faz só umas semanas. Talvez ela já esteja pronta para uma conversa em outros termos, mais propositiva, eu penso, abrindo a porta do quarto dela e entrando bem de mansinho para não assustá-la. Ela dorme profundamente. Checo seus tornozelos e pulsos, as correias estão bem firmes, mas ao mesmo tempo confortáveis para que ela se mexa um pouco, troque de posição. Ajeito sua franja com meus dedos muito limpos (minha mulher usa uma franja muito bonita) e, quando ela acorda, arregalando os olhos negros e muito assustados, pergunto se ela já esqueceu aquela bobagem de separação e se está pronta para uma nova conversa. Ela sempre foi muito orgulhosa e deve estar sofrendo com a nossa desavença. Tiro com o maior cuidado do mundo a fita cinza que cobre sua boca, para não causar qualquer irritação na pele, mas ela logo começa a gritar como se fosse uma sirene, daí tenho que recolocar a fita, uma pena. Uma pena mesmo. Então dou um beijo em sua testa e digo “até a noite, meu bem”, saio e fecho a porta sem fazer um único barulhinho sequer, deixo o apartamento e começo a me deslocar pelo corredor. Quando chego ao elevador, já não tenho certeza se fechei a porta. Retorno, enfio a chave e vejo que sim, tudo certo.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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