Foto de Nilton Santolin

VII — Do mesmo jeito de sempre

Gustavo Machado

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readMay 20, 2016

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Depois que voltamos da viagem à Serra, Clara me disse que não convinha termos pressa. Quem esperou a vida toda aguenta mais um pouquinho, meu amor. Logo você vai deixar de ser pobre. E ria alto pra burro. Eu não gostava quando Clara falava assim. Detestava que se comportasse como Isabel, a dona do restaurantezinho que, de vez em quando, fodia comigo. Não gostava dessa versão suburbana de Clara. Preferia continuar pensando nela como uma moça bem-nascida, que nunca bebia durante o dia, como ela tinha começado a fazer. Uns quantos dias depois, ela me disse a mesma coisa, quando eu falei que o cara das espingardas ainda não tinha ligado. Calma, apressadinho. E assim se passou a primeira semana, a segunda e a terceira. Fui fazendo as coisas de sempre, carregando meus patrões pra cima e pra baixo no Jaguar, principalmente Dr. Henry, com uma novidade: sempre que possível, levava Clara a um motel qualquer. Às vezes só por meia hora; em outras, tardes inteiras. Ela não gostava de repetir o lugar, e preferia os mais fuleiros. Da familiaridade nasce o abuso, diz a fábula, e logo começamos a cometer as imprudências, a ponto de eu comer Clara no estacionamento do Shopping Center onde ela sempre pedia que eu a levasse, duas ou três vezes por semana, pra fazer massagem e arrumar o cabelo. Acho que ninguém viu, por causa da película escura dos vidros, e também porque não estava muito cheio. Deixei-a em casa. Antes de descer, bem na frente da portaria do prédio de luxo, ela me deu um beijo longo na boca, sem a menor cerimônia. Depois desceu procurando na bolsa bagunçada o isqueiro com o qual acenderia um dos cigarrinhos coloridos. Saí dali o mais rápido que consegui. Estava atrasado pra buscar Dr. Henry. E devia estar muito, muito atrasado, porque houve duas coisas que não aconteciam nunca. Primeiro, ele estava me esperando na frente da clínica, observando as imitações de lavanda que o paisagista havia instalado no canteiro da entrada; depois entrou no Jaguar e se acomodou na frente, no banco do carona, bem ao meu lado. Fiz as primeiras quadras do caminho de casa, quando ele tocou meu braço, bem de leve, e disse que desejava dar um passeio. Mandou que fôssemos até o Centro Histórico da cidade. Já estava escuro quando estacionamos poucos metros antes do Viaduto dos Suicidas. Logo ao descer do carro, Dr. Henry parecia sentir frio com aquela sua jaquetinha de camurça. Corri ao porta-malas do Jaguar, peguei meu próprio sobretudo e tomei a liberdade de pousá-lo sobre os ombros esqueléticos do velho. Ele parou de andar e me fitou apertando os olhos, parecendo-me surpreso e profundamente agradecido. E você, rapaz, não vai congelar? Eu tenho pescoço grosso e curto, sou dessa raça que não sente frio, Dr. Henry, eu brinquei, e ele sorriu de volta mas parecia não ter prestado a mínima atenção ao que eu acabara de dizer. Andamos até o parapeito do viaduto, nossos sapatos com solado de couro estalando nos ladrilhos hidráulicos que pareciam ganhar vida naquele frio seco. Uma mulher passou por nós levando uma criança de uniforme verde, que carregava uma mochila de rodinhas. Tentei escutar o que eles conversavam, mas Dr. Henry parou, segurou meu braço, fazendo com que parássemos bem no meio do viaduto. Ficamos um pouco observando o tráfego que escorria lento e volumoso lá embaixo, distante de nós, dos dois lados da avenida demarcada pelos antigos postes recém-restaurados pela prefeitura, iam reduzindo o tamanho, conforme avançavam em direção à Zona Sul, até parecerem miniaturas. Sob os arcos amplos da fortificação, mendigos se apertavam uns contra os outros, acalentados por latas com sarrafos em brasa e pela vaga expectativa das cada vez mais raras Kombis ocupadas por voluntários que lhes traziam sopa. Eu estou no inverno da vida, meu rapaz, disse-me Dr. Henry. E descobri duas verdades aterradoras, ele falou, erguendo a gola do meu casaco, que ficava ridiculamente grande demais no seu corpo raquítico. Olhei pra ele com toda a minha atenção e todo o meu pavor, toda a minha existência se transformando numa espera culpada. A primeira, ele continuou, tem o tamanho de uma bola de pingue-pongue, está alojada no meu estômago e tem bracinhos insidiosos e perninhas nojentas que estão se espalhando, com pressa, famintos, pelas minhas entranhas. A segunda coisa que descobri, continuou, é que Clara tem outro homem. Você me compreende, rapaz?, compreende a profundidade da minha perdição?, perguntou Dr. Henry, despindo-se do sobretudo que acomodou sobre os meus ombros, carinhosamente. Senti um gosto amargo na boca e uma vontade quase incontrolável de vomitar. Muitos metros abaixo de nós, o tráfego seguia escoando gente do trabalho pra casa em câmera lenta, do mesmo jeito de antes. Do mesmo jeito de sempre.

Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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