Ilustração de Philip Reinagle

VIII — O desenho das coisas

Gustavo Machado

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readMay 27, 2016

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Depois das revelações. Deixamos o Centro Histórico e rodamos com o Jaguar umas duas horas, sempre em silêncio. Uma musiquinha de câmara escoava gentilmente pelos autofalantes, deixando-nos ainda mais miseravelmente infelizes. Até que Dr. Henry desligou o som me pediu pra manter segredo sobre suas duas descobertas: o câncer que lhe comia as entranhas e o amante de dona Clara. Eu mesmo ficara tão penalizado com o a doença daquele homem, o homem que me apadrinhara depois da prisão, que nem me ocorreu sentir ciúmes de Clara. Nem sentir vergonha de ser, provavelmente, só mais um amante dela. Eu vou precisar muito da sua ajuda, rapaz. Posso contar com você, uma última vez? Claro que sim, Dr. Henry. Quando eu me for, você vai ficar muito bem, entende? Ah, Dr. Henry… Escute, escute. Pode ser uma coisa difícil de ser feita, ele advertiu, os lábios finos e esbranquiçados, os olhinhos ficando mais miúdos e mais negros do que nunca. Eu disse que sim, de novo, e não consegui deixar de comentar comigo mesmo, mentalmente, claro, porque se não seria coisa de maluco, que os ricos não têm ideia do que é uma coisa difícil. Coisa difícil é a pobreza. Até ser traído pela mulher, pra eles, é mais fácil: pegam um avião e vão pra Paris encher o cu de champanhe e acabam voltando com uma mulher nova. O câncer sim, este é mais democrático, fode todo mundo quase do mesmo jeito. Quase: mesmo assim, carcomidos de câncer, os endinheirados contornam a morte por mais tempo; têm médicos e remédios e padres e terapeutas e hospitais melhores. Agora, disse-me Dr. Henry, quando eu o ajudava a desembarcar do Jaguar, na casa dele, agora nós vamos seguir a vida normalmente, até que eu lhe peça este favor muito difícil. E vou pedir porque você é a única pessoa em que este velho pode confiar, você entende, rapaz? Eu entendia, sim. Ele se despediu me dando um beijo na testa, num gesto que me pareceu mais grave que carinhoso, e entrou.

Dali em diante fomos mesmo seguindo a vida normalmente. As espingardas chegaram, parecendo novinhas em folha; Dr. Henry atuou muito bem ao demonstrar surpresa e alegria com o presente, e mais ainda com a viagem de caça na minha companhia. Até saiu pra jantar com Clara num restaurante de comida tailandesa que ela adorava. Fiquei do lado do carro, no estacionamento, batendo papo com os outros motoristas, tomando o café que um garçom vinha nos trazer e fumando uns cigarrinhos coloridos que Clara tinha me dado na véspera. Eu começava a enjoar daqueles cigarrinhos.

Os outros dias e as outras noites não foram muito diferentes. A única coisa que mudou foi que eu já não sentia tanta vontade de comer Clara. Em algumas vezes, estive a ponto de brochar, e teria brochado, se o cheiro dela não fosse tão bom. Fui fazendo a minha parte naquele teatro, curioso pra saber quem era o terceiro homem. Fui seguindo, embora preferisse cada vez mais comer Isabel, a dona do restaurantezinho. Isabel estava fazendo exercícios de pompoarismo, um tipo de sacanagem oriental que eu achava muito interessante. Os orientais se dedicam à sacanagem em nível científico, por isso tem tanta gente lá, é o que eu sempre achei.

Ainda faltavam algumas semanas para o nosso arremedo de safari. E nessas semanas eu levei e busquei meus patrões pra cima e pra baixo, como sempre. Também como sempre, fiz pequenos serviços pra casa e pra clínica, como ir comprar vinhos e charutos, retirar roupas na lavanderia ou apanhar no aeroporto alguma paciente famosa de Dr. Henry, mulheres das novelas que vinham à cidade repuxar as carnes, podar pelancas ou enxertas próteses de silicone nos peitos e na bunda. Se eu fosse Dr. Henry, comeria todas essas mulheres. Ele devia ter comido muitas delas, anos atrás, mas agora era um velho alquebrado, canceroso e traído pela esposa, não devia ter o menor ânimo.

Numa tarde, depois de apanhar Clara no shopping, onde ela tinha ido pra uma daquelas sessões de massagem e não sei mais o quê, fomos com ela até um motel da Zona Norte. Ela entrou no quarto, tirou a roupa como se eu não estivesse ali e foi encher a banheira. Aparentava mais vontade de tomar banho do que qualquer outra coisa. Vi que ela tinha vários hematomas ovalados, nas coxas, na nuca e nas costas. Marcas de mordida. Onde é que você arrumou essas marcas?, eu perguntei, mais curioso do que enciumado. Ela já estava dentro da banheira, cercada de vapores e perfumes dos sais importados que havia despejado ali, e gargalhou alto daquele jeito vulgar que eu detestava. Agora você virou meu marido, é?, perguntou, e riu de novo. Eu ri também, meio sem jeito, e fui tirando a roupa. Vem cá, meu maridinho ciumento, vem, que eu vou te dar uma coisa que não se dá pra ninguém. Entrei na banheira com água escaldante e um forte perfume de lavanda. Pensei nos quadros com cenas de caçada que havia no consultório de Dr. Henri. Clara me lambeu o rosto e beijou; senti um cheiro forte de uísque no seu hálito. Quem é que bebia fazendo massagem numa estética do shopping? Isabel estava certa: Clara era uma vadia perigosa. De um modo que parecia ter a mão do destino, as coisas estavam se desenhando. Quando já estava dentro de Clara, movendo-me pra frente e pra trás do mesmo jeito que a humanidade se movia desde o início dos tempos, ficou óbvio que ela e Dr. Henry, de quem eu ainda aguardava um pedido muito difícil, segundo ele mesmo, esperavam a mesma coisa de mim. Havia um desenho, mesmo, se formando.

Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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