X — Algo de alegria
Por Gustavo Machado
Na manhã seguinte, eu congelava à sombra na ruela que havia atrás do Departamento Estadual de Trânsito. Tinha sonhado com imagens de um livro de arte lá da sala de espera do Dr. Henry, sei lá por quê, e aquelas pessoas manchadas e tortas teimavam em continuar na minha cabeça. Uma vez, Dr. Henry tinha me dito que aquele artista, o pintor que dava título ao livro, nos forçava a enxergar toda a nossa desgraça, toda a nossa imperfeição e toda a nossa absoluta falta de perspectiva; enfim, toda falta de sentido da nossa vida. Entende? Falei que tinha entendido porque fiquei com vergonha. Mas, na verdade, não. Não. Não entendi picas daquilo e acabei sonhando com aquela merda. Se o pintor fosse bom, mesmo, as pessoas iam ter cara de pessoa.
Então eu estava ali, batendo as solas dos sapatos no chão repleto de papeis espalhados dos sacos de lixo que os cachorros haviam rasgado na madrugada. Esfregava os ombros enquanto esperava Irineu. Agora ele trabalhava ali, mas tinha sido agente penitenciário e cuidara do meu pavilhão. Ele me devia um favor. Melhor que isso, ele me devia o próprio pescoço por causa daquelas coisas que acontecem na cadeia. Naquela época, Irineu se atrapalhou com uma dívida. Ajudei na negociação, ele conseguiu transferência, virou carimbador de papeis de carro. Pega, agora não devo mais nada a você, falou Irineu, a cara muito fechada, alcançando-me um bilhete onde estava escrito, com os seus garranchos de semianalfabeto, tudo que o Departamento podia me informar sobre o fortão que era dono de um carrinho vermelho surrado, o homem que estava comendo Clara e que, conforme o pedido preliminar de Dr. Henry, eu deveria identificar, catalogar, mapear e cercar. É um serviço fácil, eu pensei, enquanto decifrava a letra medonha de Irineu, que já me dava as costas. Qualquer coisa a gente conversa, eu disse a ele, minha voz meio trêmula por causa do frio. Não me procure de novo que eu te dou um tiro, ele me falou, arreganhando os dentes ruins e me mostrando o cabo esfolado do trinta e oito velho que ele levava enfiado nas calças, acomodado sob a manta de gordura mole que escorria da sua barriga sacolejante. Não se esqueça da nossa diferença: você é vagabundo e eu sou polícia, entendeu? Obrigado, Irineu, eu falei, na minha vez de dar as costas, batendo os dedos num chapéu imaginário, lembrando de como os caras fazem nos filmes. Um dia eu volto aqui e faço uma plástica neste merda, eu pensei comigo mesmo, já pisando no acelerador macio do jaguar, que me obedeceu, possante e silencioso, passando pelos outros carros como se eu estivesse numa pista de decolagem.
Eu não gostava de entrar no Palácio da Polícia porque aquilo ali me enchia de calafrios e más recordações. Mas entrei porque tinha um outro amigo lá, Félix. Ele tinha sido meu orientador no Programa de Ressocialização de Egressos do Sistema Penitenciário. Me ajudou a voltar pro bom caminho, na medida do possível a quem vive no lado de baixo da vida, como eu e até mesmo como ele, que era um polícia de quarto escalão. Félix me encontrou na portaria do prédio e fomos juntos a um botequim que havia na rua de trás. Bebemos café excessivamente adoçado nos mesmos copos que, à noite, deviam servir aos cachaceiros. Ele me contou que sua mulher tinha perdido os dois seios por causa de um câncer fodido que quase a matara. E que precisava muito de uma reconstituição, mas que eles não tinham dinheiro. Ela sempre foi magrinha, mirrada; agora parece um menino, falou Irineu, meio insinuante. Ele sabia pra quem eu trabalhava, devia ter uma boa ideia do que eu queria com a ficha daquele proprietário de um Uno vermelho. E eu entendi onde Félix queria chegar. Fui atalhando e disse que arranjava uma cirurgia pra mulher dele, depois que as coisas acontecessem. E com a melhor equipe de todas. Mas que daí talvez fosse precisar de alguma cosia além de informações sobre o sujeito. Tipo o quê? Talvez eu precise de um cu, um cu de plantão, entende, Félix? Ele entendia, sim. Félix saiu e fiquei esperando por ele ali mesmo, naquela espelunca grudenta que fedia a cerveja choca e gordura. Impressionante como a gente vai se acostumando às coisas boas e sentindo falta delas toda vez que se depara com aquele tipo de lixo. Felizmente ele não levou mais do que meia hora até voltar com um envelope. Vou fazer um churrasco pra gente, lá em casa. Arruma uma mulher pra levar. Despedimo-nos e logo eu estava de volta ao Jaguar.
Pisei fundo e fui buscar Clara, que já me esperava em frente do portão, impaciente. Você se atrasou, ela disse, falando o endereço em que ela estava sendo esperada pra almoçar com umas amigas dondocas feito ela. Perguntei se ela queria que eu a esperasse lá mesmo. Não, não. Vai em casa tomar banho que você tá cheirando a fritura. Depois me busca, bem cheiroso, que eu vou querer você a tarde toda, ela falou, retocando o batom e se olhando num espelhinho redondo. Não falei nada e segui assim, dirigindo até a Zona Sul, quieto. Passamos pela cancela do condomínio de milionários. Babás uniformizadas passeavam com crianças e carrinhos de bebês por todas as partes. Depois dizem que pobre é que faz filho, eu pensei. Clara apertou minha bochecha, desembarcou falando no celular e bateu a porta sem se despedir. Depois que ela entrou no casarão que se esparramava confortavelmente por um gramado adornado por morrinhos e folhagens coloridas, liguei para Dr. Henry. Disse a ele que já tínhamos tudo à mão. Ele disse alguma coisa em aprovação, fez uma pausa, me deu boa tarde e desligou. No caminho até a minha casa, onde eu obedientemente tomaria banho e trocaria de roupa e me encharcaria de perfume, fiquei pensando que, pela primeira vez, a voz de Dr. Henry tinha transparecido algo de alegria.
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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.