Thomas Probst

XI — Um homem chamado Antonio

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
3 min readJun 18, 2016

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Por Gustavo Machado

O tempo corria ligeiro, e era nessa rapidez exagerada dos venenos irreversíveis que eu afundava num universo que ainda não conhecia; o mundo das más escolhas conscientes. Antes, tudo de ruim que tinha acontecido na minha vida fora meio por acaso. Um pouco pelas circunstâncias, um pouco pela necessidade, um pouco pela minha imaturidade, um pouco porque suburbano faz coisa de suburbano mesmo. Agora era diferente. Embora eu não soubesse exatamente para onde estava indo, sabia bem direitinho que era o caminho errado. Eu tinha de cumprir vários papéis. Para Clara: eu e seu velho marido viajaríamos até uma zona liberada para a caça, mediante a quitação de taxas exorbitantes; lá eu daria um jeito de fazer com que seu marido deixasse este mundo depois do disparo acidental de uma espingarda que lhe arrancaria a cabeça. O que eu ganharia com isso? Depois que a poeira baixasse, passaria o resto da vida comendo Clara sem nunca mais trabalhar. Para Dr. Henry: eu e ele nos valeríamos do pretexto do Safari com o qual sua mulher o presenteara para fazer com que seu amante, e logo depois ela mesma, desaparecessem. O que eu ganharia com isso? Depois que a poeira baixasse, trabalharia só como disfarce num restaurante em alguma aconchegante cidade europeia, mas acho que já contei esta parte. Ninguém me ensinou, mas intuí — e sempre gostei de confiar na minha intuição — , que ricos e pobres são pedaços irreconciliáveis da natureza humana e de tudo o que a envolve. Nunca confiei nos ricos. Tinha alguma coisa profundamente errada no que ambos esperavam de mim. Mas eu dava corda aos dois, comprometendo-me com ambos. E, enquanto esses últimos dias antes do Safari insistiam em voar, eu tentava desacelerá-los cortejando a moça esquisita que trabalhava num dos cafés do shopping em que eu levava Clara. Também me dedicava a um outro novo talento, o de pacificar as questões do meu bairro: dissolver rusgas entre vizinhos, descobrir pais para mães solteiras, amolecer locatários sedentos por ordens de despejo, ajudar a polícia a desentocar marginais que não queríamos por lá, encontrar donos de cachorros perdidos, obter receitas médicas para antibióticos, martelar as pontinhas dos dedos de quem assaltava os aposentados, ajudar a cobrar contas dos caloteiros. Acho que estava me tornando uma espécie de líder comunitário muito discreto, de algum modo conhecido só por quem precisava de mim. Outra qualidade que eu desenvolvia era a de observador. Ou de caçador. Em pouco tempo, eu havia mapeado toda a rotina do sujeito do carrinho vermelho. Naqueles dias de observação acurada, conheci a cidade como nunca, observando detalhes aos quais, em outra situação, eu jamais me ateria. Mas isto não vem muito ao caso. O caso é que o homem se chamava Antonio. Assim, sem acento. Era previsível e não foi difícil conhecer alguns dos seus hábitos e prever outros. Andei com Antonio, ou melhor, seguindo-o, por lugares que eu ainda desconhecia. Tornamo-nos íntimos, embora ele não desconfiasse da minha existência. E, numa noite mais fria do que as outras, eu ouvia rádio no Jaguar e observava Antonio pela janela de uma cafeteria. Então decidi que era mais que hora de nos conhecermos.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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