XII — O meu é preto

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readJun 24, 2016

Por Gustavo Machado

Ágata de Barros por Daniel de los Santos

No café. Acomodei-me numa banqueta redonda junto ao balcão. Pedi um Carioca duplo. Nosso Carioca leva uma espuminha de leite vaporizado, disse-me o menino que atendia ali. Tinha a cabeça raspada, tatuagens no pescoço e olheiras profundas. O meu é preto, disse a ele, cuidando meu alvo pelo espelho levemente inclinado que havia bem no alto, no topo do pé-direito muito alto. Então não é Carioca, insistiu o menino, fazendo uma careta que eu não sabia o que significava. Perguntei, bem baixinho, se ele estava me chamando de ignorante e falei que ele me desse logo um café preto, duplo, não muito forte e sem nada de espuminha ou eu mesmo me serviria. Ele se desculpou, enxugou as mãos no avental de corpo inteiro que lhe cobria e foi pilotar a máquina. Logo um cheiro gostoso de café me envolveu, reconfortantemente.

Pelo espelho, vi que Antonio ainda se acomodava numa mesa perto da janela. Sorridente, conversava com duas mulheres jovens que não pareciam pobretonas como ele. Elas riam muito alto de tudo o que ele falava. Conheço esse tipo, eu pensei comigo mesmo: fortões bons de papo que vão se infiltrando entre os ricos pra aplicar os golpes deles. Nas universidades também há fortões assim, mas são playboys que tomam Nescau Prontinho no intervalo das aulas, não têm aquela brutalidade faminta por algum conforto dos caras como Antonio, fodidos de pai e mãe que, por algum milagre, tinham sido contemplados pela natureza com algum charme; as riquinhas imaginam que os bandidos devam ser assim. Nem desconfiam que Antonio, embora banque o valentão de vez em quando, possa ser tão bunda-mole quanto os playboys das universidades delas, só que pobre. Na cadeia tinha um cara assim. Um fortão que tinha ficado velho; um halterofilista de subúrbio que nunca tinha conseguido ser atleta profissional. Acabou comendo cabeleireiros e costureiros. Foi preso pelo envolvimento na morte de um deles. Quando o conheci, estava com cinquenta e nove anos e cento e sessenta e três quilos. Aqui está, disse o menino, me entregando o café numa caneca alta. Experimentei: preto, perfumado, encorpado. Muito bom. Desculpe pelo mau jeito, eu disse a ele. Todo mundo tem dias ruins, devolveu o garoto, levantando os ombros magros, acho que aliviado, enquanto passava um Perfex verde no balcão de madeira bem encerada. Conhece aquele cara ali?, perguntei a ele, falando mais baixo e apontando para o espelho à minha frente a figura falastrona de Antonio. O menino olhou por cima do meu ombro e mudou sua expressão. Claro que ele conhecia. Você é da polícia?, quis saber. Relaxa, eu disse, empurrando uma nota de cinquenta dobrada em quatro na sua direção. Ele a pescou mais rápido do que eu poderia supor e a enfiou em algum lugar sob o avental. Acho que ele vende pó, sabe? Pó? É, ou bala, sei lá. Senta sempre ali do lado da janela, fora de hora, pede uma dose de uísque, uma lata de energético e um copo com gelo e fica bebericando. Dá uns dez, quinze minutos e começa a chegar gente. Eles vêm em duplas, em trios. Descem de uns carrões. Às vezes têm até motorista. Ficam um pouquinho e saem. Daí chegam outros. Quer mais um café? Por conta da casa? Fiz que sim com a cabeça. O menino me deu as costas e seguiu falando baixinho, a cabeça espichada em direção ao espelho pra me olhar enquanto continuava fazendo seu relato sobre Antonio. Sempre tem uma sacola de academia com ele. Já viu esta mulher aqui com ele?, eu perguntei, mostrando uma foto de Clara, uma foto bem produzida em que ela parecia uma modelo ou uma atriz. Deixa eu ver… ah… não tenho certeza…, disse-me o menino, apertando os olhos como um homem mais velho que precisasse de óculos pra enxergar de perto. Meti a mão no bolso e alcancei-lhe outra nota de cinquenta. Não deixe a sua memória ficar turva demais, pode fazer mal aos dentes, eu disse, sorrindo só com um pedacinho da boca e já começando a perder a paciência. No meu caso, isso nunca foi difícil. O menino pinçou a segunda nota e disse que sim, que, pensando bem, lembrava dela. Tinha vindo umas três ou quatro vezes, fazia muito tempo, sempre sozinha. Ele lembrou que, na última, tinha saído junto com o cara que eu sabia se chamar Antonio. Assim, sem acento. As duas mulheres jovens e bonitas despediram-se do meu alvo, beijando-lhe as faces, e ele parecia se preparar pra sair, colocando algum dinheiro sob a lata de energético. Agradeci ao menino e me ergui da banqueta arredondada sentindo o segundo café duplo correr por algum lugar das minhas entranhas como se fosse uma droga muito potente.

Ágata de Barros por Daniel de los Santos

Cheguei à calçada antes de Antonio e fiquei esperando-o uns poucos metros adiante, enquanto acendia um cigarro. A garoa muito fina daquele dia cinzento tinha espantado as pessoas das ruas. Ele desceu os quatro degraus de cimento queimado da cafeteria e começou a caminhar fechando o zíper da jaqueta de nylon negro. Parou, sacou do bolso um telefone celular muito grande, atendeu uma chamada e começou a falar, muito sorridente, enquanto retomava a caminhada. Deixei que ele falasse mais um pouco e comecei a segui-lo.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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