XIX — Evolução analgésica

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
5 min readAug 19, 2016

Por Gustavo Machado

Uma semana após o desaparecimento de Antonio, Clara ainda cumpria uma espécie de luto. Luto intuitivo. Tinha desistido de todas as coisas que exigiam meu trabalho de chofer levando-a nas amigas, no clube, no shopping, nas aulas de paisagismo, no curso de história da arte, no curso de degustação de vinhos, no curso de arranjos florais japoneses. Trabalhei quase nada, engordei um quilo e meio, fiquei muito lascivo e comi Isabel, a dona do restaurante, umas quantas vezes.

Numa noite, eu relaxava em casa na frente da tevê, de cuecas, esparramado no sofá, quando bateram na porta. Futebol italiano. Esperei que batessem de novo. Bateram. Merda! Algum vizinho me pedindo pra resolver um problema de pobre, eu pensei. Dívida de jogo, marido sumido, adolescente grávida, noivo desempregado, toque de recolher de traficante, ordem de despejo, filho preso, multa da prefeitura. Baixei o volume do jogo, fui até o olho-mágico e espiei. Era Clara.

Abri as duas trancas e disse que ela entrasse. Foi só o que eu consegui falar: ela saltou pra cima de mim como se fosse uma gata do mato e me enfiou as unhas nas bochechas e na testa e onde mais conseguiu. Fechei a porta com um pontapé e me arrastei de volta à sala, Clara me arranhando e xingando. Pedi que ela se acalmasse e segurei seus pulsos. Ela me cuspiu e tentou me dar uma joelhada no saco. Daí também não. Daí, não. Dei-lhe dois tapas de cada lado do rosto. Não adiantou, ela engrenou uma nova carga de arranhões. Então lhe apliquei um soco curto, mas forte, bem na boca do estômago. Plexo solar, a fonte da vida. Clara caiu no chão se contorcendo, tentando respirar. Depois foi se dobrando, os joelhos subindo na direção do queixo, que nem os bebês quando ainda estão dentro das barrigas das mães, só que com a careta azulada, a boca aberta mastigando o ar que não entrava por causa do soco certeiro. Plexo solar. Eu tinha visto aquilo um milhão de vezes, em outras pessoas, lógico, então tratei de manter a calma e esperar que ela voltasse a respirar. Todo mundo volta. Levou mais uns quinze segundos, mas ela voltou. Meu rosto ardia dos arranhões. Vaca! Ardia como se eu estivesse em chamas.

Assim que ela começou chorar e respirar, pensei em dar-lhe uns chutes, mas preferi esperar que ela se recuperasse.

A culpa é sua!, foi a primeira coisa que ela disse, arrastando-se até o sofá. E repetiu umas quantas vezes; ora quase gritando, ora entrecortando as palavras com os soluços roucos de um choro que me pareceu a primeira reação sincera que eu já tinha visto nela.

Fui até a cozinha. Abri a torneira da pia e enfiei a cabeça sob a água fria. No começo foi uma merda, doeu ainda mais. Depois, a baixa temperatura fez seu trabalho e me garantiu uma suave evolução analgésica — eu tinha escutado este termo, evolução analgésica, numa conversa do Dr. Henry com um colega, um anestesista que andava de Ferrari amarela. Fechei a torneira e me ergui sentindo que a água escorria até molhar o elástico das cuecas. Peguei duas garrafinhas de cerveja da geladeira. Encostei uma delas no rosto, na testa, no ombro. Depois abri as duas e voltei à sala.

Clara estava mais corada. Tinha se acomodado numa poltrona perto da janela. A culpa é sua!, ela repetiu. Depois de aceitar a cerveja que eu estendi a ela, disse que se eu tivesse acabado com Henry no safári, como tínhamos combinado, nada disso teria acontecido. Nada disso o quê?, eu quis saber, despejando o conteúdo da minha garrafa pela garganta seca, quase de um gole só. Evolução analgésica. Falou que Henry tinha dado um jeito de descobrir sobre ela e um homem de quem vinha suspeitando. Quer dizer, tinha dado um jeito de imaginar um monte de besteiras. Estava falando de Antonio, claro. Um homem? Que homem?, foi a minha vez de falar, esvaziando o resto da garrafinha enquanto me levantava pra buscar outra. Enquanto fiz o caminho de ida e volta até a geladeira, Clara me disse que eu tinha sido muito, muito idiota ao não aproveitar a oportunidade; principalmente depois de todo aquele trabalho de comprar as espingardas restauradas, de comprar um pacote de viagem exótica, depois de termos esperado tanto. Agora, nós — eu e ela — ainda estávamos vivendo na clandestinidade, seu marido teimava em continuar vivo e Antonio tinha desaparecido. Quem é Antonio?, eu perguntei. Clara tomou um gole longo da sua garrafa. Falou dois palavrões de estivador e disse que era só um cara com quem o velho tinha cismado. O velho? Ah… agora você vai se ofender porque eu tô chamando o seu protetor de velho, seu suburbano… Meu? Meu protetor?, eu falei. Ela bebeu mais um pouco. Fez cara de nojo. Bebi mais um pouco também, aos poucos meu rosto recomeçava a arder. Qual seria o contrário de evolução analgésica? Odeio cerveja barata, ela falou.

Ficamos um pouco em silêncio. Foi ele, tenho certeza que foi ele que fez o Antonio desaparecer. Você devia arrumar um trabalho voluntário pra ocupar a cabeça e parar de pensar bobagem, eu respondi, antes de tomar mais um gole-meia-garrafa. Clara recomeçou a chorar e esticou os braços pedindo por mim. Ficou de pé e nos abraçamos. Forte. Mais fome que ternura. Ela tremia, tinha o seu cheiro bom de sempre e meu pau começou a se manifestar.

Mata esse velho pra eu ser só sua, mata?, ela disse, mordendo a ponta da minha orelha. Você quer ser só minha, eu perguntei, erguendo-a pela cintura e fazendo com que ela flutuasse até o quarto. Quero. Só sua. Então eu mato. Promete? Fica quietinha, eu falei, já deitado sobre ela na cama bagunçada. Quando terminei de tirar a roupa de Clara, ela tinha parado de chorar e eu já não sentia a queimação dos arranhões. Evolução analgésica.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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