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XVIII — Um grande desperdício

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
3 min readAug 5, 2016

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Por Gustavo Machado

Doce, amargo. Amargo, doce. Impressionante como duas mulheres podem ter gostos diferentes, eu pensei, enquanto Clara me beijava. Clara, Clara, Clara, sua língua está mais áspera, quase falei. Embora a delicadeza dos lábios, a beleza das gengivas rosadas e dos dentes parelhos e brancos, sua boca tinha uma nota amarga, fria. Eu a beijava com o piloto-automático ligado, lembrando de Isabel, a dona do restaurantezinho do meu bairro, a primeira pessoa que eu havia encontrado logo na volta do safári. Ai, que saudade!, dizia-me Clara, mordendo meu lábio inferior. E eu pensando em Isabel, Isabel, Isabel. Ela estava me esperando na cama, na minha cama, quando entrei em casa, roncando baixinho. Acordou e eu disse que ia tomar um banho. Mas ela não deixou e ficamos nos esfolando vivos até a madrugada, quando a despachei. Isabel era grosseira nos modos, na pele, no vocabulário suburbano, mas era toda doce, sem ser enjoativa. Doces eram todos os seus gostos e cheiros. E como era doce aquela sua boca excessivamente volumosa, o cheiro da sua nuca onde o cabelo mal pintado nascia bem mais escuro do que nas pontas dos fios. Sua calcinha, que ela sempre me pedia pra arrancar com os dentes, era discretamente adocicada. Daí, no dia seguinte, quando eu estava sendo quase engolido por Clara, no estacionamento do shopping onde ela achava que iria encontrar seu professor-amante, instantes depois, não poderia deixar de comparar as duas. Pena que não dá tempo de a gente ir pra algum lugar, Clara me disse, respirando pesado. Pena mesmo, eu respondi, fazendo algum esforço pra que ela não notasse que eu tentava me afastar. Clara espiou o relógio no painel e desceu. Você vai estar aqui quando eu voltar? Falei que sim, lógico. Depois que ela desapareceu num dos acessos às lojas, resolvi esticar as pernas e também entrei naquele templo cheiroso e reconfortante dos ricos. Fiz meu trajeto habitual e pedi meu também já corriqueiro café duplo. Copinho na mão, perambulei à toa como um fiscal de vitrines. Por algum motivo, o café ainda fresco acentuou, na minha memória química — era isto, memória química era isto? — , o cheiro que Antonio tinha do lado de dentro. Lembrei de como Dr. Henry fora habilidoso ao extrair os órgãos, trinchar os grupos musculares, desconectar os ossos e as cartilagens. Senti um negócio esquisito, uma espécie de culpa indefinida, e uma quase irresistível vontade de vomitar. Memória química. Mas passou. Passou assim que vi o rosto desolado de Clara, que vinha no sentido contrário. Toda ela era desapontamento, mágoa, frustração e outros quase sinônimos. Devia ter acabado de encontra e ler o bilhete assinado por Antonio, um bilhete de despedida, dizendo que havia se apaixonado por uma outra mulher. Não temos mais nada a ver, ele finalizava (não tinha sido fácil fazer com que Antonio escrevesse com o próprio punho, pouco antes de perder os sentidos, a cartinha ditada por Dr. Henry). Ainda antes que Clara me notasse, eu me deliciei silenciosamente com aquele seu pesar desonroso, vexatório. E tive de me segurar pra não rir quando ela me abraçou, soluçando, trêmula, e pediu que eu a levasse embora dali. Enlacei-a pela cintura e fomos fazendo o caminho do estacionamento. Lembrei de Isabel, também tremendo, horas antes, mas de prazer. Assim como as mulheres têm gostos e cheiros diferentes, eu pensei, é impressionante como um mesmo homem pode provocar reações tão distintas. E logo me surpreendi com a profundidade desta minha análise quase psicanalítica. Ou seria antropológica? Talvez Dr. Henry estivesse correto. Talvez eu fosse mesmo só um azarão. Só a versão social de um acidente genético, um sujeito inteligente, com grande capacidade cognitiva e analítica, com grande potencial, mas irreversivelmente ignorante, abatumado pela pobreza. Eu era um desperdício de experiência humana, segundo Dr. Henry. Ao meu lado, no banco do carona, Clara chorava e chorava e chorava. Senti vontade de gargalhar até ficar vermelho Mas não seria adequado. Que tipo de maníaco inconveniente eu tinha me tornado? Dei a partida no Jaguar, que logo começou a se movimentar, elegante e silencioso como sempre. Eu era um desperdício.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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