Gustave Doré

XXI — Vide cor meum

Por Gustavo Machado

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readSep 2, 2016

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Escutei a música escoando suavemente por baixo da porta antes de abri-la. Dr. Henry estava na cama quando entrei no seu quarto. A luz do sol do meio dia, filtrada pelas cortinas, banhava a peça com uma cor suavemente amarelada. O velho parecia menor na cama imensa.

Ele vestia um pijama bege, abotoado até a base do pescoço, as iniciais de seu nome bordadas no bolso do peito. Ele parecia dormir, o centro do rosto coberto por uma máscara ligada ao cilindro metálico que tomara o lugar do criado-mudo. Tinha caninhos enfiados no nariz.

O enfermeiro particular, um negro forte de uns sessenta anos, espetava-lhe uma seringa no antebraço quando me aproximei. Sorriu ao me cumprimentar e disse que o velho estava me esperando. Vou comer um sanduíche na cozinha enquanto vocês conversam, disse, livrando-se das luvas descartáveis ao se afastar, os mocassins brancos deslizando silenciosos sobre o tabuão bem encerado.

Dr. Henry abriu os olhos, bateu a palma da mão no lado da cama, convidando-me a sentar. Obedeci. De perto, notei que os bons perfumes do velho haviam sido substituídos por uma mistura de remédios, álcool, resquícios de urina e suor azedo. Eu devo ter mexido as narinas, intuitivamente.

Sinto muito, ele disse, ao retirar a máscara: é o cheiro da morte. Ela está a caminho. Quando eu clinicava, continuou, quando era médico de família, sabia que os pacientes não iam durar muito quando os visitava, em suas casas, e sentia esta mesma mistura de odores que você está sentindo agora, meu rapaz. Abra um pouco mais a janela.

Sacudi a mão como se dissesse que aquilo era bobagem.

Então aumente o volume e vamos escutar mais uma vez este tema, que tal?

Fiz o que ele pedia. O velho ouvia a música com os olhos fechados. Parecia em deleite. Sabe o que quer dizer “vide cor meum”, rapaz? Claro que eu não sabia. Vamos ao que interessa, ele falou. Apontando para uma espécie de penteadeira que havia na outra extremidade do quarto. Fui até lá. Terceira gaveta, ele disse, uma pasta verde, embaixo dos meus álbuns de viagem. Peguei a pasta e voltei.

Aí está a sua vida nova: passaporte, passagens, quitação de taxas, seguro, dinheiro vivo, ele disse. Tudo. O resto vai estar esperando por você do outro lado do oceano. Meu amigo já aguarda a sua chegada. Leia todas as instruções com cuidado. Você vai visitar o velho mundo. Vai caminhar sobre séculos, milênios de história acumulada. Como eu queria ter mais algum tempo e poder acompanhá-lo… Nunca mais volte para este inferno. Promete?

Fiz que sim com a cabeça. Abri os elásticos da pasta e dei uma espiada. Estava tudo ali. Olhei a data nas passagens: eu embarcaria em dois dias. Dois dias.

É depois de amanhã, Dr. Henry…

Tempo suficiente. Faça o que você tem a fazer. Como já lhe disse, quero que Clara esteja me esperando. Entendeu?

Entendi. Mas e se o tempo for diferente?

Como assim?

Se o tempo correr diferente nessa hora. Diferente pra cada pessoa, entende?

Na morte?, o velho parecia surpreso com a minha espontaneidade. Eu também estava surpreso. E me sentia um adulto preso ao corpo de uma criança.

É, na morte. Se ela custar a chegar… eu não sei como são estas coisas, Dr. Henry.

Digamos que exista o céu, o inferno e um lugar intermediário, rapaz. Enquanto ela não chegar, vou estar lá.

O purgatório?

É, o purgatório. É lá que eu vou ficar esperando até ter certeza de que ela fez a passagem.

Dr. Henry…

Relaxe, relaxe… estamos falando em linguagem figurada. Eu sou médico, lembra? Pense que você está na igreja, rezando para que as almas de dois entes queridos tenham paz.

Isso tudo parece um sonho, Dr. Henry. Eu me sinto dentro de um sonho, entende?, eu disse, sentindo uma forte tontura. Era muita coisa, muita coisa pra minha cabeça. Muita coisa mesmo.

Calma, rapaz. E tem um detalhe importante. Faça parecer que ela não suportou a minha perda. Um suicídio.

Ficamos em silêncio. O velho deixou escapar um sorriso envergonhado.

Não faria mal à posteridade a ideia de Clara ter tirado a vida por tristeza, imediatamente à minha partida. A vaidade é a última coisa que nos deixa, meu rapaz. Agora vá, ele disse. Vá, quero que você se lembre de mim com vida. Ah, faça a música tocar de novo. E recolocou a máscara de oxigênio.
Beijei a testa de Dr. Henry e saí com a minha pastinha. Cruzei com o enfermeiro, ao descer as escadas. Ele carregava uma lata de Coca-Cola Light com um canudo enfiado.

***

Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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