Joel Ron

XXII — Apartamento doze

Gustavo Machado

5 min readSep 9, 2016

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Meu telefone tocou assim que entrei em casa. Era a empregada do Dr. Henry. Voz fanha, contou que o patrão tinha finalmente descansado. Por um instante, lembrei do velho apequenado na cama gigantesca, o rosto coberto com uma máscara de oxigênio, como eu o havia visto da última vez. Ele estava certo, restava-lhe pouco tempo. Perguntei à empregada quando seria o enterro. Ainda não sabia de nada. Falei que ela se acalmasse, que cuidasse das coisas práticas. Acho que ela tentava me dizer mais alguma coisa, mas preferi desligar.

Tomei um banho gelado e, enquanto sentia a pele do corpo todo se arrepiando de frio, achei esquisito não ter nenhuma vontadezinha de chorar. Talvez eu fosse algum tipo de psicopata, sociopata, um negócio assim. Sem pena, sem medo, sem ressentimento, sem remorso. Pensei nas minhas mãos vermelhas de sangue. O sangue de Antonio. Antonio, seguido, caçado, morto e fatiado. E pensei em como era fácil sumir com uma pessoa indesejada. Antonio, Antonio. O tipo de sujeito que só chama a atenção quando faz alguma coisa errada. Ninguém sentiria falta dele. Acho que nem de mim. E em menos de quarenta e oito horas eu deveria começar minha vida nova, eu refleti, me enxugando com uma toalha grande e bem felpuda que Isabel tinha me dado. Foi pensar em Isabel que comecei a ter umas ideias. Eu sempre pensava em sacanagem quando lembrava dela. Mas dessa vez começou com sacanagem e foi ficando mais sério.

Perambulei um pouco só de cuecas, sentindo o perfume cítrico do desodorante ainda fresco. Abri uma cerveja e esparramei o conteúdo da pastinha verde sobre a mesa de fórmica. Nas instruções, estava escrito que eu deveria sair da minha casa com uma muda de roupa e os documentos e o dinheiro da viagem. Que eu deixasse tudo pra trás, inclusive o Jaguar. Que eu deixasse louça suja, cama desarrumada, persianas escancaradas.

Tudo isso era fácil. Eu sentiria saudade de Isabel. Sentiria falta de ser chamado pra resolver os problemas da vizinhança. Sentiria saudade do Jaguar, da segurança de viver sob a tutela de Dr. Henry. Mas também não deveria ser difícil substituir tudo isso vivendo numa cidadezinha da Europa, sem me preocupar com meu próprio sustento. Difícil, mesmo, seria concluir a minha parte no acordo e mandar Clara ao encontro do marido.

Vesti camisa branca, terno e gravata negros. Depois, deixei minha muda de roupas pronta numa pequena bolsa de viagem, onde guardei também as coisas da pastinha verde. Abri mais uma cerveja. Meu telefone tocou de novo. Vi a foto de Clara na tela. Parecia bem mais jovem e bonita e meiga do que na vida real. Antes de atender, senti uma espécie de alívio e percebi que, às vezes, o melhor plano pra resolver um problema difícil como aquele é não ter plano nenhum. O negócio é deixar que as ideias avulsas de acolherem na cabeça, entende?, eu pensei comigo mesmo, ouvindo minha própria voz e imaginando que um dia talvez tivesse de dar uma entrevista sobre o caso todo. Uma entrevista sobre como focar nos objetivos certos e ser dono da sua vida. Atendi o telefone.

Você já sabe?, Clara perguntou, chorosa. Falei que sim. Quero ver você antes do enterro, precisamos conversar umas coisas. Posso ir pra sua casa? Melhor não, eu disse, e sugeri que nos encontrássemos num dos nossos motéis mais recorrentes. Ela perguntou como eu podia ser tão frio. Fiquei quieto. Ela acabou aceitando. Disse que ela fosse na frente e que me mandasse uma mensagem dizendo em qual quarto estaria me esperando.

Uma hora e meia mais tarde, cruzei com o Jaguar pelo portão de entrada do motel. Escutei o plim da mensagem. Olhei meu telefone: foto de Clara. CHEGUEI AP 12 NÃO DEMORA. Quem é?, perguntou Isabel, livrando-se do cinto-de-segurança. Coisa do meu trabalho, falei, estacionando na vaga do apartamento quinze. Subimos uma escadinha caracol metálica. Dentro do quarto, Isabel me beijou com força, tentando tirar a minha gravata. Gostei desse negócio de motel, ela disse, sorrindo. Que é que deu em você?, continuou. Acordei pensando em sacanagem, eu falei. Vai enchendo a banheira que eu tenho que dar um telefonema ali no carro. Não demora! Não demoro, não. Posso abrir um espumante? Abre.

Do porta-malas do Jaguar, tirei o estojo de couro com as espingardas de caça que Clara havia encomendado pra que eu matasse seu marido. Não sei se era mais um caso de memória química, senti uma mistura de cheiros: couro, pólvora, óleo lubrificante de máquinas, sangue. Vesti umas luvas fininhas de médico. Pendurei o estojo no ombro. O resto já estava no meu bolso. Fui até o apartamento doze.

A porta estava só encostada. Estava escuro lá dentro, música alta que não se podia escutar do lado de fora por causa do isolamento acústico. Fechei a porta. Escutei barulho de água. Clara devia estar no chuveiro. Abri o estojo, saquei uma das espingardas. Eu já as deixara carregadas. Abri uma fresta da porta do banheiro.

Vi Clara sentada sob a água quente da ducha superpressurizada. Não esperei que ela me olhasse. Vidro estilhaçado. Tudo se tingiu de um vermelho muito vivo. O disparo foi mais forte do que eu esperava, mas confiei no isolamento de som. Tirei do bolso a carteira de Antonio e a deixei perto da cama, como se ele a tivesse perdido enquanto partia, em fuga. Larguei por ali também uma cueca usada por ele.

Devolvi a espingarda ao estojo. Levei o estojo ao carro de Clara. Estava cheio de pequenos amassados e arranhões. Dava pra ver que ela não gostava mesmo de dirigir. Depois, voltei ao meu apartamento, abri mais uma cerveja, e comi Isabel por umas boas três horas. Quando estávamos indo embora, perguntei se ela tinha vontade de ir à Europa. Deus me livre. Tenho pavor de frio, disse Isabel, gargalhando meio alto. Foi a resposta errada.

Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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