Jackson Pollock

XXIII — Parfait Amour

Por Gustavo Machado

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readSep 16, 2016

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De volta ao meu quarto do motel. Isabel estava na banheira, me esperando. Já tinha esvaziado uma garrafa de espumante. Quando me ouviu entrar, falou que deixara uma taça pra mim. Entra aqui comigo, ela disse, me chamando lá da água. Espia só o perfume delícia dessa espuma, falou Isabel. Respirei fundo. Eu ainda sentia o cheiro do sangue de Clara, estava entranhado nas minhas narinas. Talvez nos meus pulmões. Nem com banda eu vou comer a Isabel, pensei, tirando a roupa. Respirei fundo de novo, fechei os olhos e só o que eu via, do lado de dentro das pálpebras, eram aqueles azulejos salpicados de sangue, cabelo, osso moído e miolos. Um grande painel coberto de pinguinhos caóticos dispostos em várias tonalidades e formatos e tamanhos. Dr. Henry tinha uns quadros assim, numa sala da casa dele. Espingarda de caça. Munição especial para animais pesados. Clara não era um animal pesado. Ela devia estar do mesmo jeito, caída. Quanto tempo levaria até que alguém a encontrasse?

Jackson Pollock

E daí aconteceu uma coisa esquisita. Olha só!, comentou Isabel, os olhos vidrados na protuberância que se avolumava no centro da minha cueca. Vem logo pra cá com isso!, ela falou, me esticando a taça que guardara pra mim. Livrei-me da cueca, bebi a taça em três tempos, sentindo sede, e fui me acomodando naquele monte de espuma com cheiro de desodorante. Ah! Eu trouxe uma coisa pra gente, disse Isabel. Ergueu-se saiu da água toda ensaboada. É um negócio que eu ganhei faz tempo, fiquei guardando pra um momento especial, eu escutava sua voz vindo do lado de fora do banheiro. Afundei. Senti o calor me abraçar de um jeito mais triste que acolhedor. Era como ser abraçado por um homem febril, em seus últimos instantes na Terra. A água se mexeu. Isabel de novo na água. Voltei à tona. Prontinho, ela disse, me alcançando a taça que trazia numa das mãos, enquanto levava a outra à boca. Um líquido roxo, com um cheiro enjoativo de violeta. Que negócio é este?, eu quis saber. Ai, como você é pobre. Isso aqui é uma coisa muito fina, chama Parfait Amour. Quer dizer amor perfeito, em inglês. Pelo menos o cara que me deu falou isso. Não lembro se era inglês ou francês. Sei lá. Prova. Experimentei. Era forte, doce, perfumado, queimava as paredes das bochechas. Mas era macio na hora de descer pela garganta. Você acha que eu preciso consertar os meus peitos?, quis saber Isabel, segurando e apertando os seus peitões de bicos quase negros. Eu gosto assim, respondi, bebericando meu amor perfeito. Comecei a sentir um leve adormecimento na ponta da língua e uma ardência no nariz. Isabel me contou uma história engraçada de uma cozinheira que tinha apanhado o marido na cama com outro homem. Ela ria da própria história, ria até ficar sem ar, os peitões sacolejando na espuma. Talvez fosse melhor ela consertar, sim, eu pensei, meu corpo se transformando em borracha na água quente. Quente demais, dava até tontura. Daí ela falou pro marido, mas Nenê, Nenê é o apelido dele, Nenê, precisava ser com outro homem, Nenê… Bebi o resto do Parfait Amour e, depois daquele último gole, o cheiro melado do licor se misturou ao perfume barato da espuma de banho. Senti meu coração desacelerando, desacelerando, desacelerando. E notei que eu também ria, embora sem som, da história contada por Isabel. Ela tinha uns dentes bonitos. Gostava de ver os peitos sacudindo na espuma. A água ficou mais pesada; o fundo da banheira, mais escorregadio. Meus olhos pesaram. Comecei a piscar. Cada vez mais e mais lentamente. Numa das últimas vezes em que abri os olhos, não era mais Isabel na banheira. Era Clara, contando a mesma história e também rindo muito apesar de lhe faltar um quarto da cabeça. Não parecia se importar com aquilo. Tá tudo bem, ela falou. Mesmo? Mesmo, de verdade. Melhor você descansar um pouco. Eu concordei. Fechei os olhos. Senti vontade de não abri-los nunca mais.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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