Fernando Kluwe Dias

XXIV — Queria ser um robô

Por Gustavo Machado

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readSep 23, 2016

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Por algum motivo, eu sonhava com cavalos. Ou delirava tendo esses bichos, tão distantes do meu cotidiano, como tema central da minha pequena epopeia. Cavalos selvagens, ao menos me pareceram selvagens, galopando assustados e resfolegantes num filme em preto e branco. Veias grossas pulsando estufadas nos seus pescoços cheios de vida. Eram meus! Ainda dentro do sonho alopático que me acometia, lembrei de um filme, colorido, em que um caçador de robôs sonhava com unicórnio e depois descobria ser ele mesmo um robô. Sempre quis ser um robô daqueles. Mas não. Comigo as coisas eram mais simples. Ou mais duras. Até nos sonhos: só um punhado de cavalos lindos em preto e branco. E eu não devia me descobrir um robô. Não num futuro próximo. Não eu. Não com aquela dor que me martelava a cabeça pelo lado de dentro. Ou pelo lado de fora? Eu estava sendo golpeado enquanto os cavalos se afastavam e eu me esquecia do unicórnio. Raspei a língua dupla de tão grossa no céu-da-boca e escutei. Não eram mais os golpes na cabeça. Não era o galope dos meus potros suados. Duas pancadas breves, três mais fortes, pausa, quatro, sete pancadas insistentes. A almofada de um punho firme encontrando a madeira áspera. Acordei com batidas na porta. Abri os olhos com dificuldade — eles tinham se transformado em comportas emperradas de uma velha barragem. Abri-os e vi o quarto do motel girando. Rápido, no início, depois foi reduzindo até parar. Novas batidas com a parte mole do punho de alguém: tum-tum-tum. Pareciam acontecer diretamente contra a minha cabeça. Virei o rosto, por instinto, e tentei vomitar. Eu estava deitado numa cama redonda e via meu corpo nu refletido no espelho do teto. Café da manhã! É cortesia!, alguém gritou do lado de fora. Uma voz de homem. Deixe no chão, eu disse. Ouvi o som do que devia ser uma bandeja barata com caixinhas de suco, sanduíches embalados e potes de iogurte e copos térmicos de café sendo acomodada do lado de fora. Depois, os passos do funcionário do motel, que se afastava. E mais nada. Nem música, nem automóveis, nem vozes. Longe, bem longe, um cachorro latia. Se tinha um café da manhã me esperando, eu precisava lembrar da véspera. E a véspera começou a voltar, fácil, mas sem uma cronologia clara: o cheiro do Parfait Amour, as bochechas queimando, o enjoo, os peitões sacolejantes de Isabel, seus dentes bonitos de madrepérola, a história de um homem flagrado na cama com outro homem, risadas gordas, gosto e cheiro de sangue, os recheios sortidos de Clara estilhaçados no banheiro, a água quente, uma arma com as digitais de Antonio, sua carteira. Eram muitos nomes, muitas cenas a acomodar. Andei pelo quarto, ainda bastante tonto, joelhos guenzos, minhas roupas jogadas, do avesso, como se eu houvesse me despido às pressas. Logo começou a se confirmar a sequência lógica daquele enredo idiota, no qual somente um idiota absoluto, como eu, poderia ser apanhado. Nem sinal de Antonio, Clara, Isabel, mochila com moeda estrangeira e uma vida nova. Só eu e os meus cavalos. No banheiro, Clara. Do mesmo jeito que eu a deixara. Apenas parecendo mais rígida e azulada. Ou acinzentada? Acomodei-me ao lado dela, ainda pelado. Fiquei com frio e a abracei. Foi pior, porque ela estava gelada. Então a envolvi com força, um súbita vontade de chorar. Vontade antiga, desbotada. Uma bola amarga me subiu da boca do estômago ao esôfago, fazendo sua escalada aos arranhões, aos apertos, e então comecei a soluçar como não fazia desde a época da Casa de Acolhimento da Criança, nas primeiras semanas. Aquele mesmo tipo de choro que, mais tarde, eu escutaria dos outros tantos meninos recém-chegados. Era um tipo de choro que esgotaria mesmo os mais pujantes estoques energéticos. Quando cessava, depois de horas, era sucedido por um torpor narcotizado do qual a gente só despertava quando os cuidadores começavam a chutar as pernas dos beliches, soprando seus apitos estridentes de juiz de futebol. Surgiram as sirenes. Dois tipos diferentes: polícia e ambulância. Mais perto. Mais e mais. Imaginei uma entrevista com Dr. Henry, olhinhos marejados, falando de seu desapontamento, já que tinha me acolhido como um filho. Eu pensava no filho que nunca teria, quando começaram a bater na porta de novo. As sirenes cessaram. A porta foi golpeada novamente. Dessa vez não era com a almofada do punho, mas com alguma coisa pesada. Como se eu pudesse fugir. Como se fosse fácil! Como se fosse antes da curva. Cerrei os olhos com força. Gritos, alertas, advertências, madeira rachando, dobradiças cedendo. Apertei ainda mais os olhos. Queria ser um robô. Queria o calor de Clara. Queria jamais ter chorado assim. Queria rever meus cavalos. Mas só consegui enxergar o campo em preto e branco. Meus potros suados já estavam em outro lugar. Tinham passado.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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