Bêbados voam, pássaros caem…

Samuel Lemos
{DEi | CHÁ}
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7 min readAug 17, 2016

–Viva São João! — brincava Tunico enquanto aguardava outros clientes serem atendidos na lanchonete da biblioteca das ciências naturais.

– Isso foi bala! — respondia ao seu lado um dos humanos mais arroxado que já vi. Era um cliente barbudo, com uma bandana preta de caveira na cabeça. Era seu primo e melhor amigo da infância Marcos, O Pirata de maritataca. Ele era um sujeito gordo, de baixa estatura, com a pele queimada pelo sol e uma tatuagem já verde de tartaruga no braço direito, provavelmente gasta pelo tempo e o escaldante sol potiguar.

Assim como a maioria das pessoas estranhas, eu gosto do pirata! Apesar de não se expressar muito pela fala, ele é conhecido por sua habilidade escrita de encantar multidões. Já foi preso algumas vezes por contravenções de baixa gravidade. Liderara o movimento estudantil na EPP durante muito tempo, inclusive puxando greves e ocupações em prédios públicos. Seu apelido de “O Pirata” foi dado por ele mesmo em sua fixação por encontrar o avô desaparecido. Marcos herdara uma embarcação de pequeno porte na qual passava longos meses no rio Ivipanim ou em alto mar alimentando sua paixão por poesias e tartarugas.

Frequentemente ele desaparecia, e desta vez já durava quase dois anos de sumiço. Mas as autoridades competentes ainda não tinham sido acionadas, afinal, dentro da família Marcos e seu jeito excêntrico já não era muito levado a sério, de algum jeito então, apesar das preocupações, era consenso que ele voltaria a qualquer momento. Por ajuda da minha irmã coincidência, entre todos os familiares nenhum tinha mais pressa em encontra-lo que Tunico, afinal, mais que ninguém ele sem dúvidas se interessaria em conhecer o livro do avô.

– Fala féla! Há quanto tempo! Tava se escondendo aonde fresco?

– Tive uns probleminhas cum uzomi aí… Precisei dar um tempo, mas acho que tou de volta — Marcos, encostado no balcão, respondia sem expressão enquanto comia um pastel de vento e tomava um café preto em um copo de alumínio amassado, desses comuns em casas de avós.

– O que foi dessa vez? Pichação? Depredação? Invasão a prédio público?

– Tá fazendo pergunta demais. Se eu respondesse teria que matá-lo.

– Sei… — focado em conseguir carona para o próximo destino, não faria muito sentido se aprofundar num diálogo com um interlocutor desinteressado em falar. Todavia, O Pirata, era a primeira pessoa que deveria ter conhecimento do livro de histórias do vovô Zé Luz. Afinal, muitas delas eles ouviram juntos. No entanto, o olhar vago dele e seu desinteresse em falar qualquer coisa tornavam o diálogo inviável. Tunico tentava se enturmar:

– Mas e que história de bala é essa?

– Tou lhe dizendo. Eu conheço. Não foi bomba de São João. Foi um tiro de três oitão.

– Mas como você saca isso? Pelo barulho dela?

– Se eu respondesse teria que matá-lo.

– Sei… Você realmente ficou um tempo sumido… Viajando pelo estado?

– Se eu respondesse teria que matá-lo — quando a enrolação e a mentira não funcionavam bem, Tunico usava sua mais ardil estratégia: Ele contava a verdade.

– Meu amigo, é o seguinte: lembra-se das histórias que o vovô Zé Luz contava?

– O que tem? — Era incrível como repentinamente o olhar do O pirata mudara! Ele havia sido fisgado? Seu olhar desinteressado e vago se transformara em algo personalizado. Pelo visto a idolatria ao avô ainda era um ponto em comum entre ambos.

– Encontrei numa cômoda de mãe um livro com várias delas! Lá tava também esse escapulário aqui e Maaaaano… Foi tudo um achado sensacional! Tem aquele conto do lobisomem de Idopa, aquela história da bruxa de Jandir… Tem até um bilhete falando da cigana do vale do açúcar! — Com uma rapidez absurda para seu porte físico, Marcos espeta Tunico com algo pontudo, que no susto derruba o café de um cliente, que a julgar pelo penteado e o jaleco branco, provavelmente era um dos playboys de Medicina:

– Seu imbecil! Sujou o livro de anatomia da biblioteca! Qualé boy? Pirou? — Tunico pede desculpas, mas pelo tom de voz e avanço físico incisivo para provocar seu recuo o diálogo não seria muito útil. Pelo esforço na intimidação, era óbvio que o estudante não aceitaria aquele desaforo. Existem pessoas que sentem a necessidade de descarregar todas as frustrações em um evento pífio, em que se sentem no direito de extravasar.

Para o azar do futuro profissional da saúde, existem outras que simplesmente não se importam com nada disso. Tunico apesar de saber que não tinha a razão plena, passou a revidar nos empurrões. Alheio a toda a atenção que isso causava, O Pirata voltara seu ao seu olhar vago, de modo que parecia que o achado não era mais nada impressionante. Ele pôs então uma moeda no balcão, provavelmente pagando pelo café, pegou um papel e um lápis em sua mochila e começou a rascunhar algo.

Após uns cinco minutos de ridículas mútuas ameaças, os brigões chamarem a atenção de toda lanchonete, inclusive da equipe de vigilância do campus. Os funcionários da lanchonete, e um ou outro cliente, mais apaziguador já pareciam não se importar mais em evitar a luta, até que finalmente Marcos intervém subindo em cima do balcão e gritando a plenos pulmões:

– Se eu fosse você eu procurava essa cigana! — berrava Marcos, que apesar dos sumiços, por sua militância no movimento estudantil, era uma figura conhecida na EPP. Possivelmente por esta razão, todos pararam para ouvi-lo. Inclusive os brigões em potencial que já recuavam ante a aproximação dos vigilantes:

– E minha mãe me dizia aflita:

Cuidado filho com quem você anda!

Mal sabia ela que as outras mães diziam o mesmo sobre mim…

E meu pai falava sempre:

Filho, não jogai pérolas aos porcos!

Coitado, se soubesse que eu era o mais seboso…

E minha irmã me admirava e buscava se inspirar em mim,

Se ela soubesse o quanto sou exemplo sobre como não se ser…

E eu me detestava, mas só tinha eu mesmo, então o que fazer além de aprender a conviver com isso?

Fui aprendendo a me perdoar.

Entender que enquanto estiver em movimento, algo estará melhorando.

Seja eu, os meus, o meu mundo, logo tudo.

Então se quero ser feliz, que outra escolha eu tenho além de fazer minha felicidade?

Aquele que sabe aonde quer chegar, já alcançou metade do caminho!

A vida consiste em fazer uma escolha e não olhar mais para trás!

Quando o menino já conhece o destino ele trata pior o caminho.

E em um ponto equidistante entre o ontem e o amanha haverá um destino?

Se eu fosse você eu procurava essa cigana!

Encerrava com um maior grito Marcos, que falava isto olhando na direção de Tunico. Ele declamava estas palavras como um poema ensaiado, como se estivesse o tempo todo reunindo forças para expor estas ideias da melhor forma possível. Os aplausos do público foram a oportunidade perfeita para cessar o atrito. Pois a intervenção artística sugeria que a briga era apenas uma desculpa para chamar a atenção do público. Apesar de violentos, Tunico e o estudante de medicina não eram burros. Sabiam que aquele não era o ambiente para trocar tapas, sobretudo com os vigilantes se aproximando. Sem mais avisos então, o dono do jaleco branco saía nitidamente irritado.

– Marcos… — confuso Tunico reclamava quase em tom de súplica — o que você sabe?

Quando você deixar de ser cabaço e for digno eu conto. Agora, que tal ser útil e ajudar aquela moça? — Tunico não tinha notado, mas em uma mesa próxima ao balcão em que estavam tinha uma garota chorando. O Pirata, aproveitando o desvio de olhar do seu interlocutor aproveitou a deixa para recolher suas coisas e ir se preparando para sair.

– O que você precisa saber — com a mesma surreal velocidade, O Pirata puxou um canivete e esticou o escapulário do pescoço de Tunico dizendo — é que este escapulário, no momento, é mais importante que sua vida. Cuide bem dele! — dito isto, O Pirata saiu sem mais nem menos.

Tunico ficara estarrecido com tudo aquilo. Ele não entendera nada do que se passava, e ainda ficara com a nítida impressão de que anteriormente havia sido espetado no pescoço pelo canivete que acabara de ver. Todavia, eu lhe lembrei aos ouvidos que não adiantava muito ir atrás do seu primo. Apesar do muito o que refletir sobre a conversa, ele tinha agora seu tipo de missão preferida agora para pôr em prática: conversar com desconhecidos vulneráveis para eventualmente tirar algum benefício disto. A abordagem incisiva safada sempre fora sua especialidade:

– Não vou perguntar se há algum problema porque sei que uma moça bonita como você não chora por nada. Minha pergunta então é: como este humilde servo pode lhe ser útil? — na presença do Tunico, que se sentou à mesa, a moça rapidamente passou a chorar de modo mais contido, ao ponto de quase poder fingir que nem havia lágrimas antes. O galanteio de Tunico era mais uma expressão de quem avaliava uma candidata que qualquer outra coisa. Após alguns segundos limpando as lágrimas sobressalentes ela respondeu:

Perdi minha bolsa. Você pode me emprestar dinheiro para pagar esta água? — com uma classe impecável a moça apontava para a garrafa de plástico sobre a mesa.

– Se todas as pessoas que precisam de ajuda tivessem apenas esta natureza de problema, o mundo seria um lugar bem mais fácil de viver. Considere sua água paga. Mas, fora isto: o que lhe incomoda?

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Samuel Lemos
{DEi | CHÁ}

Pai de Gabriel Curinga e nas horas vagas, ArCaNj0 Pescador de Ilusões.