Ela tem a mente de uma criança de cinco anos
— Ela tem a mente de uma criança de cinco anos, disse-me com um leve sorriso de constrangimento.
Natal, vinte de setembro de dois mil e quinze. O céu limpo da capital potiguar banhava-me com as incertezas de mais um pós-concurso:
Será essa minha vez? Vou decepcionar a família novamente? Quantos concursos ainda me restam? Questionamentos dos quais tentei — em vão! — me privar.
O relógio marcava 13h43m. Minha carona estava atrasada. Parece-me que as horas caminham mais preguiçosamente quando estamos esperando por alguém. Mas, para minha felicidade, costumo andar prevenido: carregava comigo um livro; um bom livro — como não poderia deixar de ser — do Gabriel García Márquez. Percorro, avidamente, suas páginas; parágrafo após parágrafo. Assumo, naquele instante, um pacto de cumplicidade mútua com Gabo: jamais falarei sobre as confidentes memórias de suas putas entristecidas. Sobre isso, silêncio perpétuo.
Aos poucos vou ganhando companhias que se vão com a mesma sutileza que chegaram. Apenas noto as presenças das pessoas ao meu redor nos breves intervalos que tiro para reler um ou outro parágrafo sensacional — os leitores de Gabo sabem muito bem que ele abusa de parágrafos sensacionais como se fosse um dependente químico.
Ao longe percebo o seu andar cambaleante despontando pela calçada. Vinha acompanhada dos seus pais, embora caminhasse sem ajuda deles. Esbanjava um sorriso desproporcional, demonstrando uma espécie de deslumbramento contínuo por algo ou alguém. Não pude deixar de notar o brilho do seu olhar infantil.
Continuo — apreensivo por saber o desfecho da história — desconectado do mundo ao derredor. Um ônibus, com destino à Ponta Negra, para. Pessoas sobem e descem do transporte coletivo. Meus olhos, nas páginas, sobem e descem, desfolhando os segredos do nonagenário narrador.
Aquele castelo de paz que construí em minha cabeça, numa brevidade de vida, começa a desmoronar: meu celular rompe o silêncio de sua existência. Era o meu amigo, o da carona, justificando seu atraso.
Mas, surpreendentemente, sinto uma mão desconhecida acariciando minha barba. Um ligeiro desconforto tomou conta de mim. Minha voz alterou-se por um instante. A confusão daquela surpresa alterou minha fala ao ponto de, do outro lado da linha, o meu interlocutor notar aquela variação.
A menina especial, impulsivamente, tocou-me os pelos da face com uma curiosidade pueril. Lembrei-me, naquela fração de tempo, do meu irmão, também especial. Embora soubesse que o autismo dele, certamente, o impediria de tentar um contato físico — principalmente com um desconhecido.
— O que é isso, Juliana? Indagou-lhe sua mãe, constrangida pelo ocorrido.
Às vezes nos fechamos para o mundo. Não nos permitimos a doce sensação do deslumbramento. Selamos nossas mentes para evitarmos novos contatos. Encapsulados em nossas vivências, esquecemo-nos da beleza dos pequenos gestos, das coisas simples, dos momentos puros.
A inocência, certamente, é o mais belo dos dons.
— Teve uma vez que ela viu um rapaz careca e do nada passou a mão na cabeça dele — Confidenciou-me sua mãe, agora menos embaraçada. Sabe, quando o cabelo tá crescendo e fica só com aqueles “canhões”? Concluiu.
Sorri. Disse-lhe que não tinha problema. Juliana poderia puxar minha barba. E ela continuava — feliz da vida. Naquele momento, minha barba era o que havia de mais especial no mundo daquela garota especial. Senti-me um verdadeiro felizardo. Logo eu, que não esperava muito daquele concurso, fui aprovado na avaliação de Juliana.
Perguntei-lhe se ela gostava daquilo, mas ela não disse nada. Sabe quando você está feliz demais para falar? Juliana não falava, mas, eu sabia, era pela felicidade que sentia. Ela, apenas, sorria e puxava minha barba. Às vezes doía um pouco, mas não me importava. Às vezes, para fazer alguém feliz, mesmo por alguns instantes, é necessário suportarmos a dor. Mas o sorriso e o brilho dos seus olhos valiam o esforço.
Minha carona chegou…
Obrigado, Juliana. Nunca me senti tão especial.