Enganos em família

Samuel Lemos
{DEi | CHÁ}
Published in
7 min readAug 8, 2016

E a confusão não dava sinais de cessar. Loucura! Como uma coisa tão insignificante podia causar tanto caos em uma família?

Começara no quarto de Betinho, o caçula de três anos, que fora (em tese) o primeiro a acordar:

- Gutavô, tou com medo. Tem um negoço na minha cama… pode cumer?

- Vai dormir moleque! — O pedido gentil do pré-adolescente não surtira efeito.

- Entaum vô nu quartu du painho… — de insistências infantis Gustavo até podia resistir, mas de ameaças de ir ao quarto dos pais? Betinho estava doente e no aniversário de casamento dos pais, com a rotineira ausência da irmã e pela bagatela de R$ 2,37 a hora, Gustavo ficara de babá dormindo no quarto do irmão. “Magina que absurdo! Que muleque sem vergonha e chantagista! Um camelô de fraldas!”.

Você que está me lendo agora deve estar perguntando-se: “Camelô de fraldas?” Oxente? Diga-me um profissional que conhece as profundezas mais recônditas da alma humana mais a fundo? (tirando os videntes que trabalham para o banco, claro! Sim, aqueles caras que adivinham quando você mais precisa de dinheiro e te ligam falando sobre financiamentos. Se bem que… quando não precisamos de dinheiro?

Não!

Não!

Não!

Nada de vendedores, psicólogos, psiquiatras ou advogados! O camelô conhece a fundo a alma humana e sabe oferecer produtos com uma classe incomparável! À frente anos-luz mesmo dos maiores burgueses do mediterrâneo feudal… Senhores da lábia? Não… O termo camelô ainda vai parar no dicionário, alí próximo de “Charles Brownson”. Tudo bem que os camelos sempre pecam nas piadinhas quanto à terceira idade, mas quem prova que também não é uma estratégia?

Outro dia passeando com minha avó no mercado da cidade, um deles perguntou quanto ela queria para jogar fora a blusa que usava. Para meu azar havia sido eu o “malfeitor” que tinha lhe presenteado com a dita cuja, depois de muita confusão, empurrão e bofetadas, da minha avó em mim, claro! Levei a última blusa do seu estoque (obviamente aquela que era novidade em Paris!).

Enfim, o camelô conhece a fundo a arte da chantagem! Seja ela de cunho emocional no: “Pêra mor de Deus meu sinhô, tou aqui na moral em nome do sinhor Gêsus vendendo essa camisa do Blaqui Sabá, compraí pra ajudar vá lá…”, ou mesmo o lado marqueteiro infalível: “Pô cara, dá só uma sacada nesse brinco! Tava te esperando rapaz! Três pessoas tentaram comprar, treis! (curioso como eles sempre falam um número mas gesticulam outro com a mão) Não vendi porque achei que nenhuma delas combinavam com ele. Olha a Aerodinâmica? E o Design? Ultima geração mano! Tô te dizendo!”.

Onde estávamos?

Sim!

De uma forma ou de outra, Gustavo sabia que Betinho ir ao quarto dos pais às 3:00 da manhã geraria uma reação em cadeia que se não causasse um ciclone — dizem que o desastre do Titanic começou mais ou menos assim — culminaria com um grito de: “Gustavoooooo… Não vou te pagar os R$ 14,22! Por que você não cuida do seu irmão!?”, depois que o canalhinha contasse sobre o desprezo que recebera do irmão. Não! Comprar as hentais era prioridade máxima! Não era permissível tanto trabalho a toa.

É… O sonho erótico com a professora de biologia tinha mesmo que esperar. Como obviamente Gustavo não cumprira o acordo de dormir no quarto do irmão ele teria que ir ao quarto do peste ver o que ele queria comer. Mas o destino, este clássico gozador com calças de Jazz, quis que no caminho até o quarto do menor Gustavo escutasse o grito de pânico que ecoava pela casa. Tarde demais! “Foi disparada a flecha do destino que poderia gerar um cataclismo de proporções suficientes para destruir o planeta! Preciso tomar providências… Medidas precisam ser tomadas!” — matutava o recém-iniciado na vida hormonal. Tudo culpa daquele filme: Efeito borboleta, que dividia espaço com a professora de biologia naquela cabeça (mais acima, claro!) juvenil. Aquele filme mudara a história daquele típico jovem estigmatizado pelos pensamentos, como todos de sua idade. Gustavo agora era paranóico com as coisas mais ridículas.

Por exemplo, no dia que Betinho quebrou o roteador da casa e ficaram uma tarde sem internet. Justamente a tarde em que, em sua cabeça, ele conversaria no facebook com a futura mãe dos seus quatro filhos (Evan, Evandson, Evair e Charles, afinal, X-men é foda!), em homenagem a seu herói! Havia tirado 10 em biologia, e tinha visto nos olhos da professora que ela falaria no bate-papo com ele pela tarde!

Há momentos na vida das pessoas em que a cortina do tempo fecha portas irreversíveis. Momentos que apesar de aparentemente não serem significantes, ressignificam tudo. São passagens que apesar de breves não têm precedentes e os abrem para um admirável mundo novo. Às vezes um garoto torna-se um homem a partir de um único evento. E numa dessas, a candura infantil, as mãos calejadas pelo perfume de Emanuela tornam-se incompatíveis com as responsabilidades que a penugem de pedreiro acima dos lábios impõe. Nestas horas é preciso assumir um papel protagonista e mostrar a vida quem se é.

Gustavo ansiava por isso. Tanto que ao ouvir o grito correu de pronto para o local dele — o quarto de sua irmão mais velha, a Hávila. Quando finalmente chegou lá, viu a fatídica cena que mudaria toda sua existência: Era Emanuel! O namorado da sua irmã, nu, em cima da cama berrando como a garotinha que Gustavo sempre soube que ele era. Mas o pior não era aquilo. Quem dera! Hávila corria como uma desesperada, nua também, com uma chinela na mão.

– O que demônios está acontecendo aqui!? — Indagava o pobre Gustavo, que bravamente punha as mãos nos olhos do caçula e não nos seus.

– Num ta vendo que tô tentando matar? — respondia friamente a desalmada Hávila. Como ela podia ser tão insensível ante a infância dos irmãos?

– Matar o que exatamente? Seus fetiches íntimos? Nós de susto? Painho de desgosto? Ou você mesma quando nossos pais descobrirem que o Mané do Manel ta dormindo aqui? — os pesarosos gritos de “Tira essa coisa horrível daqui” teimavam em não cessarem. Pareciam acordar o bairro inteiro, menos os pais da garota.

Gustavo não conseguia ficar mais um segundo diante daquilo. Já era hora de fazer alguma coisa (que não fosse cuspir)! Afinal ele tinha 13 anos incompletos, era quase um homem feito! Até 56 pentelhos ele já tinha! Deixou que Hávila continuasse com sua “batalha dupla” com o imaginário, pois se havia alguma coisa ali obviamente Emanuel “cumprindo seu papel” masculino tinha expulsando-a.

Era sua obrigação como homem avisar o ocorrido às autoridades cabíveis, somente seu pai poderia acabar com aquela pouca vergonha, enquanto sua mãe afagaria Betinho no berço. Era o plano perfeito! Voltaria a sua aula imaginaria com a professora de biologia sob o doce som de sua irmã levando umas boas vassouradas, enquanto o chato do Emanuel era expulso da casa. Quem sabe até conseguisse um aumento no pagamento pelo trabalho de babá pelo ato de heroísmo dedurando sua irmã! Ou pelo menos uma compensação para não exigir um psicólogo, traumatizado com o que vira.

Betinho havia sido deixado no berço com a promessa de que seria recompensado quando todas aquelas adversidades passassem. Quando já estava na porta do quarto dos seus pais, Gustavo ouvira outro grito de pavor. O que podia ser aquilo? Gustavo tentou entrar pela porta a chutes, como sempre via nos filmes policiais. Não conseguindo abriu a porta normalmente, para fechar de vez aquilo que chamava de infância. Nem no pior dos pesadelos o pré-adolescente podia imaginar tal coisa, não… Não de seus heróis. Sua mãe corria pelada com uma vassoura na mão, enquanto seu pai gritava como Emanuel, em cima da cama.

Diabos! Era o fim do mundo? Pensei que tinha sido em 2012! Como confiar nos Maias? Maldita promessa da Mãe Diná! Só pode! “Chegou o dia do julgamento final e eu nem minha virgindade perdi! Quero meu advogado! Processarei Belzebu por nunca ter sido assediado ou abusado por minha professora de biologia!”. Pobre criatura… Como o mundo podia ser tão cruel com alguém tão jovem? Ele só queria ver seus pais dormindo na cama como anjos, sua mãe com o travesseiro enterrado na cabeça para evitar os roncos suínos do pai. Talvez levar uns gritos por acordá-los àquela hora. Ele só queria ver o pai pegando a vassoura preferida da mãe, só servia se fosse à preferida, e quebrando na cabeça da irmã! Poxa! Isso seria pedir demais?

Infelizmente esta é a hodierna situação na quais nossos jovens estão inseridos. Um mundo em que crianças não comem mais a primeira coisa que vêem pela frente e os filhos são obrigados a amadurecer antes da hora, tendo que matar as baratas da casa… Que mundo cruel…

– Já que não posso mais ter paz vendo tudo que vi, só me resta agora uma atitude sensata: A Vingança! — Claro! A culpa era do moleque! Efeito borboleta mostra essas coisas, se ele tivesse simplesmente comido a porcaria do bicho nada disso teria acontecido! — Ir ao quarto e aplicar-lhe umas bofetadas pra aprender a descobrir as coisas sozinho e deixar de ser tão dependente, é a atitude que um homem de verdade tomaria agora — concluía o nosso herói.

Desta vez, para economizar pés ele não tentou derrubar a porta. Ao chegar ao quarto, com a vassoura preferida da mãe, Gustavo encontra seu irmão Betinho muito ocupado devorando com voracidade, com papel e tudo, uma barra de chocolate. Agora ele lembrara:

- Claro! Mamãe também pôs uma dessas no meu quarto uma dessas ontem à noite!

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Samuel Lemos
{DEi | CHÁ}

Pai de Gabriel Curinga e nas horas vagas, ArCaNj0 Pescador de Ilusões.