O dia que tocamos o infinito (ou como vencemos um campeonato de cachaça)

Luiz Luz
{DEi | CHÁ}
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10 min readApr 22, 2016

Durante muitos meses falou-se nesse evento. Em rodas de conversas, fóruns na internet, intervalos entre aulas; todos estavam comentando sobre. Existia uma espécie de fascínio coletivo por esta temática. Frequentemente, faziam-se apostas em quem outorgaria tal feito. Obviamente, nomes e mais nomes eram ventilados como os possíveis galardoadores. Apesar disso, em verdade, poucos estavam dispostos a arriscarem suas vidas, protagonizando um espetáculo nunca antes visto naquela pequena cidade interiorana. E os boatos iam aumentando mais e mais. Em cada bar, em cada beco, na rua do cais, nas praças públicas; todos falavam sobre isso. Eis, então, em um dia aparentemente qualquer, foi oficializado a realização deste evento: o primeiro campeonato de cachaça.

Os rumores eram reais. Um grupo de mortais dispostos a provarem sua destreza e completo domínio da arte de entorpecer-se com fluidos etílicos. Almas fatigadas pela laboriosa tarefa de convencer ao mundo de que elas não prestavam. Naquela altura, evidentemente, não precisavam de muito esforço para comprovar isso, mas, não era suficientemente acreditável que teriam esse reconhecimento em vida. Por esta razão, resolvemos participar daquele litígio.

Após muita discussão, eis que, finalmente, o time que representaria a cidade foi formado. Em sua composição tínhamos: Diego, O Lixo, conhecido pela sua capacidade de permanecer ingerindo álcool, mesmo se fosse necessário fazê-lo alheio de sua consciência, adquirindo uma espécie de sonambulismo alcoólico; Luan, O Macaco Louco, elemento famoso pela sua aparente possessão bestial enquanto os momentos de ebriedade tornavam-se tangíveis; Samuel, O Filho do Trovão, criatura que ostentava uma extensa lista de feitios merecedores de qualquer epopeia; Luiz, O Pirata da Ilha da Maritacaca, sujeito aparentemente calmo, talvez, sustentado pelo ofício de poeta que insistia em desfazer, mas que sempre o capacitava para o lado boêmio da vida. E assim, com criaturas que ostentavam inomináveis delírios, foi criada a equipe ‘Areia Branca Ataca’.

O que para muitos seria mais uma tarde mormacenta na cidade de Mossoró, sorrateiramente, tornou-se o palco de uma hercúlea batalha de gladiadores ensandecidos por um etilismo voraz. Naquele dia, as hostes celestiais, as hordas de demônios, as aves no céu, insetos, criaturas marinhas, seres rastejantes, até mesmo os felinos (criaturas famosas por nunca se envolverem com nada), assumiram-se em seus papéis de telespectadores. Aquele mês, o mês de novembro, ficaria eternamente marcado como: o mês em que os mortais pleitearam o infinito.

As equipes foram chegando aos montes. Algumas pareciam que haviam saído do esgoto mais próximo diretamente para batalha. Não obstante, jamais desconfiaríamos de sua capacidade de surpreender a todos os presentes. Eram seres dos mais variados tipos: altos/baixos, gordos/magros, homens/mulheres; enfim, eram muitos. Parecia que todas as tribos almejavam aquele título. Desde os tempos remotos, quando a humanidade não estava sozinha, quando os deuses ainda não tinham sido inventados, quando o medo era o único idioma compreensível, não houvera nenhuma outra assembleia que pudesse, minimamente, ser comparada àquela.

Por alguma razão o grupo que estava à nossa frente despertava um temor em proporções violentas. Tinham, neste grupo, um cabeludo que era tão magro que por vezes podíamos confundi-lo com os fios de seus cabelos; era chamado pelos colegas de ‘Pouca Sombra’. Havia também uma mulher, ou algo semelhante, que aparentava carregar todo o ódio do mundo em seu semblante emputecido; cada copo que ela bebia, parecia que estava consumindo a cólera de mil soldados no campo de batalha. Os sussurros no salão tratavam-na como ‘persona non grata’ — ninguém lhe dirigia a palavra. Um senhor acompanhava-os; ele aparentava ter uma idade bastante gasta. O único nome pelo qual atendia era o de ‘Velho’. Por último, eles tinham mais um integrante o qual, desde o primeiro momento que pisou naquele salão, a única coisa que se dedicou foi ao ato de tragar algumas dezenas de cigarros baratos e fedorentos. Ninguém sabia o nome dele. Sua existência, aparentemente, era ignorada pelos demais. De longe, esta equipe era a favorita ao título. Apesar de confiarmos em nossas habilidades, os demais grupos apresentavam um ou outro indivíduo que inspirava algum receio. À parte disso, eram todos formados por pessoas comuns, que almejavam a possibilidade de um dia serem notadas, e, por alguma razão, elas pensavam que alcançariam isso através daquele título.

A bandeira nacional, desfraldada e tremulante, subia lentamente no mastro. Embora não concordássemos, teríamos que começar com o hino nacional — afinal de contas, era um evento oficial. Iniciamos, então, o litígio que tornaria relés mortais em seres mitológicos. A disputa foi intensa. Por onde se olhava, viam-se guerreiros e guerreiras dando o máximo de suas forças em busca da tão aclamada glória. E os copos eram entornados com inédita ferocidade. Até mesmo o aparentemente mais tolo dos concorrentes, naquele momento, revelava-se como uma bestial criatura sedenta. E foram assim aqueles primeiros minutos de disputa.

Perdemos um pouco de tempo, pois, inicialmente, havia uma discrepância entre as estratégias do nosso grupo. O Macaco Louco — já apresentando sintomas de sua ignóbil personalidade ébria — agarrou-se numa das garrafas e bradou: “ESTA É MINHA! VOCÊS QUE BEBAM O RESTO”. Aquilo era, de fato, algo inesperado. Teríamos que beber três garrafas de cachaça em menos de duas horas. No entanto, tínhamos quatro participantes em cada grupo, não poderíamos simplesmente dividir uma garrafa para cada. Foi então que O Filho do Trovão entrou em disputa com o Macaco Louco. Foram momentos tensos. De um lado, tínhamos a fúria de uma besta que, por orgulho, ou, seja lá o quê fosse, queria mostrar que era capaz de beber uma garrafa de cachaça sozinho. Do outro lado, o Filho do Trovão tentava persuadi-lo de que a melhor estratégia era bebermos todos da mesma garrafa, só assim saberíamos o quanto restaria para completarmos nossa árdua tarefa. Enquanto isso, as demais equipes iam se distanciando de nós. Parecia que nunca iríamos sair daquele estado discursivo para, de fato, iniciarmos nossa disputa. Foi então que o Pirata e o Lixo juntaram-se ao Filho do Trovão, assumiram as rédeas da situação e ameaçaram excluir o Macaco do time. Diante de tamanha coesão social, o nosso problemático primata, à contragosto, viu-se obrigado a aceitar a situação, pois sabia, lá no âmago do seu ser, que ele não era capaz de raciocinar e escolher boas estratégias por conta própria.

Bebíamos, bebíamos e bebíamos. Bebíamos como se o amanhã não passasse de um belo vernáculo num refrão da Legião Urbana. Bebíamos como se a eternidade fosse algo palpável, e como se nossas vidas pertencessem ao infinito. Era tudo que nos restava. Por um instante chegamos a crê que nossas existências tinham sido planejadas visando àquele momento. Iríamos até o final, embora este não fosse nada promissor, mas, mesmo assim, continuaríamos nossa jornada etílica.

Eis que, de repente, um urro gutural estronda no salão. Era a ‘persona non grata’, aparentemente possessa por algum demônio saído do abismo eterno, berrava desaforos em nossa direção, enquanto batia três vezes seguidas, com a palma estendida, sob a mesa. A sua força, somada à precisão dos seus movimentos, era capaz de deixar qualquer pessoa atordoada. Com um olhar sanguinolento, indagou-nos colericamente: ‘CADÊ VOCÊS?!’. E um silêncio aterrorizador passou a preencher o espaço. Não havia nada a ser dito. Em nossa frente tínhamos a perfeita materialização de uma máquina feita para o ódio. É como se ela houvesse nascido para aquilo. Era quase impossível imaginá-la em outra situação. Copo após copo, ela amedrontávamo-nos com sua copiosa fúria. Tínhamos ali um inimigo que fazia a vitória parecer com algo inalcançável.

O relógio aparentava exercer o imbróglio serviço de desanimarmos. Estávamos concluindo a primeira garrafa. O time da ‘persona non grata’ já havia bebido quase duas garrafas. E outro time estava próximo de uma garrafa e meia. Haviam-se passado quinze minutos desde o início. Segundo nossos cálculos, àquela altura devíamos ocupar o quinto ou quarto lugar. Naquele instante, ocorreu algo que mudaria o destino de todos os presentes: persona non grata sucumbiria à disputa e acabara de vomitar em meio ao salão. Ninguém acreditou naquela cena. A criatura que mais esbanjou capacidade e despontava como a principal candidata, simplesmente, fraquejava diante dos nossos olhos. A sua dignidade escorria em intensos jorros de vômitos que saíam de sua boca. Aquilo deu novos rumos à nossa disputa. Pelo o que constava no regulamento, caso algum membro de alguma equipe vomitasse ou se ausentasse do recinto, a equipe seria desclassificada.

Haviam-se passado vinte e cinco minutos. Nossos ânimos foram renovados. Novamente tínhamos a possibilidade de sagrarmo-nos vencedores. Porém, ainda estávamos em terceiro lugar. Era o momento de ousarmos mais. Precisávamos adotar uma estratégia mais voraz. Algo que nos instigasse mais que qualquer outra equipe no recinto. Decidimos que usaríamos a proibida e milenar técnica do ‘carrossel da morte’. Tática que consistia em formarmos um círculo com os quatro participantes e a cachaça ao centro. Alguém iniciaria, não apenas bebendo a cachaça, mas, virando-a por no mínimo dez segundos. Em seguida, a garrafa passaria para a mão do colega à esquerda. Isso significaria que estaríamos entrando num caminho sem volta. A possibilidade de deixarmos esse plano, pela primeira vez, naquela tarde, tornara-se algo real. Mas sabíamos que aquilo era preciso. O Macaco Louco se encarregou de iniciar o processo. O Lixo, o Filho do Trovão e o Pirata foram em seguida. O mundo girava junto àquela garrafa. Nós havíamos, finalmente, alcançados o clímax das nossas existências. Pela primeira vez nossas vidas ficaram em evidência. Tivemos, provavelmente, mesmo que por um breve instante, uma autêntica epifania coletiva. E aquele desejo voluptuoso crescia à medida que ficávamos ébrios. Naquela tarde, flertamos com a face do Infinito. E ele parecia sorrir.

Terminamos a segunda garrafa. Naquele momento determinar qual equipe estava ganhando, além de ser uma tarefa dificílima, também beirava a injustiça, pois só o fato de terem chegado até ali já outorgava o direito de todos serem considerados autênticos vencedores.

Trinta minutos.

A visão que tínhamos daquele lugar era de um campo de guerra. Um amontoado de corpos ia surgindo minuto a minuto. As fileiras das equipes esvaziavam-se à medida que o relógio trabalhava. O primeiro quarto de tempo da competição já havia sido alcançado. Restavam apenas três equipes na disputa. Todas as outras equipes foram desclassificadas, algumas por desistência dos membros, outras por plena incapacidade física de continuarem. Consta nos registros históricos que àquele fora o dia com o maior número de urgências por embriaguez daquela região. Estávamos na metade da terceira garrafa, mas, infelizmente, o fim parecia algo muito distante. Já não tínhamos o mesmo fôlego do começo. Uma sensação nauseante insistia em nos visitar a cada vez que olhávamos para aquelas garrafas. O time parecia cansado. Aliás, bem mais do quê isso: a equipe apresentava uma espécie de melancolia. Todos os presentes notaram essa súbita apatia que havia florescido no âmago de nossas almas. O time dispersou-se por alguns minutos pelo salão. O Filho do Trovão foi beber um pouco d’água — talvez para variar um pouco. O Lixo foi ao banheiro; no entanto precisou ir acompanhado, pois alguns competidores sugeriram que ele aproveitaria a situação para vomitar escondido. O Pirata foi fumar um cigarro. O Macaco Louco não foi fazer nada, apenas ficou ali na nossa mesa, a única coisa que ele conseguia fazer, naquele momento, era existir — ainda assim, com grande dificuldade. O Pirata apresentava um olhar perdido e deveras distante. Talvez ele estivesse pensando se teria sido melhor se eles tivessem levado algum tipo de tira-gosto para disputa. Mas a probabilidade disso ocorrer era baixíssima, pois eles não sabiam que isso era permitido. Consequentemente, por terem lido as regras embriagados, eles foram os únicos a não levarem nada para auxiliar nos trabalhos. Havia times com refrigerantes, água de coco, suco de frutas, confeitos, limões. Alguns times, de costumes covardes, levaram um espremedor automático de limões, onde só era necessário colocar o limão e, automaticamente, sairia o suco por um orifício. Tínhamos levado apenas a nossa gana de vencer — e não sabíamos se isso seria suficiente.

O Pirata foi pego de surpresa por um dos juízes. Ele mal compreendia as palavras desferidas naquela abordagem. Parecia que o juiz falava em alguma língua antiga que há muito havia sido esquecida pelas civilizações modernas, até que na quarta vez que o juiz falou, finalmente, a mensagem foi compreendia: ‘Vocês estão ganhando! Volte pra sua mesa!’, dizia ele. Ao olhar para mesa, o Pirata viu os seus companheiros tentando dar cabo à tarefa. E num momento de abrupto heroísmo, desses só vistos em histórias em quadrinhos, tirando forças de onde não sabia, agarrou-se à garrafa e levou-a até sua boca. Ele sabia que àquele momento era matar ou morrer. E ele não se importava em morrer. E por longos vintes segundos, talvez os mais longos da história da humanidade, ele manteve a garrafa ao alto. Até que finalmente ele a trouxe para mesa novamente. No entanto, as esperanças dele foram por terra ao notar que ainda restavam quase dois dedos de cachaça. Ele não conseguiria dar continuidade. Era humanamente impossível continuar. E foi então que o nosso primata, que inicialmente apresentou um comportamento egoísta em relação ao grupo, desprendeu-se de qualquer rancor dos litígios internos e sacrificou-se pelo grupo. Naquele instante ele pegou a última garrafa, com a última dose, e, pela última vez, levou-a ao ar, e bebeu o remanescente das nossas lutas. E, efetivamente, fomos tão felizes como há muitos séculos não se era permitido aos mortais o serem; e gritávamos e pulávamos pelo salão. Em meio a berros eufóricos e abraços calorosos, as únicas palavras que ecoavam em minha cabeça eram: ‘Areia Branca Ataca!’’.

Enfim, o relógio marcava trinta e cinco minutos quando nos tornamos heróis.

Quatro horas depois, acordamos todos ao mesmo tempo. Estávamos espalhados pelo chão de um apartamento estranho. Não tínhamos noção se despertávamos de um sonho fantasioso ou se aquilo teria realmente acontecido. Ficamos em silêncio por alguns instantes. Há momentos que o silêncio grita. E este era um desses momentos. Até que o Filho do Trovão rompeu o silêncio e perguntou o que aconteceu. O Macaco não tinha noção do resultado. O Lixo, simplesmente, ainda aparentava visíveis sinais de ebriedade e pouca informação poderia ser extraída dele. O Pirata, sentindo-se reconfortado por saber que não era o único que vivenciou àquilo, embora a possibilidade de um delírio coletivo não pudesse ser totalmente descartada, e, mostrando um sentimento tão raro em sua voz, confidenciou-lhes aquilo que trazia em seu peito: “Os trovadores cantarão histórias ao nosso respeito!”.

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Luiz Luz
{DEi | CHÁ}

Poeta, Pirata e Dono da Lua. Instagram: @LuizLuzPirata