O segundo Dia do Curinga

Samuel Lemos
{DEi | CHÁ}
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5 min readJul 1, 2016

Hoje fazem dois anos em que desembarquei naquela que seria a maior aventura da minha vida até então. Infelizmente um chato acidente de tempo e geografia não me permitiram embalar seu sono, beijar seu rosto, te dar os parabéns e agradecer nos seus olhos por você existir. Mas na ilusão de que este frio computador não é tão frio e entende meu aperto no peito, transcrevo aqui uma das primeiras cartas que te escrevi:

João Pessoa, 03:50 de 30 de junho de 2014

Era um dia normal. Exceto pelo fato de que eu não iria trabalhar. Exceto pelo fato de que meus pais estavam em João Pessoa. Exceto pelo fato de que eu passaria os próximos três dias no hospital com minha esposa. Exceto, é claro, pelo fato de que a despeito da minha estranheza quanto ao crescimento da barriga, os móveis novos, a casa nova, a vida nova, parecia que era verdade mesmo e não uma épica “pegadinha do malandro[1]”; aquele coração que eu precisei ouvir para a ficha cair, aquela foto alvinegra do ultrassom que eu não entendia nada, aqueles movimentos abdominais que eu ainda jurava que eram peristálticos, aqueles pés inchados e humor inconstante aparentemente tinham de fato uma motivação específica:

“Parece que tem mesmo uma criança ali dentro?!”

Praia de Ponta do Mel

Bom dia Filho,

São 10 para às 04 da manhã, e após um final de semana inteiro de protelações, levantei-me — como se estivesse conseguindo dormir — para cumprir alguns prazos do mestrado. Algumas pessoas podem não pensar sobre isso, mas é impossível e praticamente involuntário não refletir sobre este momento, não só único até então em minha vida, mas um dos poucos irreversíveis.

Daqui a algumas horas o sentimento que já há nove meses não pára de crescer, e já tem nome, quarto e admiradores, estará entre nós em definitivo.

Ser pai é um sonho que nutro há anos. Confesso que não imaginava realizá-lo antes dos 30. Afligem-me certos receios que espero que sejam naturais: “Os preparativos foram a contento?”; “Você nascerá com saúde?”; “Conseguirei te educar?”; “Será que estou pronto?”.

Quer saber Curinga?

Nunca nos achamos prontos até não termos outra opção senão estarmos!

Acredito piamente que este fato é aplicável maneira de gestarmos TODOS os grandes acontecimentos de nossas vidas. A queda por vezes não é só inevitável, mas desejável como etapa do processo de voo. Há um filme — clássico de minha geração — em que uma ideia nesta linha é muito bem apresentada:

- Você está nervoso com a luta?

- É… Tô assustado.

- Não parece.

- Eu não posso aparentar.

- Então você não tem que lutar!

- Mas eu acho que tenho.

- Olha, viver com você não foi nada fácil. As pessoas me veem, mas pensam em você, agora com tudo isso de novo vai acabar sendo muito pior.

- Não tem que ser filho.

- É, mas vai ser!

- Porquê? Você tem muita coisa!

- O quê? Meu sobrenome?

- Foi por isso que arranjei um emprego decente! Por isso que as pessoas me tratam bem desde o começo, agora eu começo a conseguir as minhas coisas! Eu começo a conseguir tudo sozinho e isso acontece! Eu estou pedindo um favor a você, desista desta luta e isto vai acabar muito mal pra você e para vai acabar muito mal para mim.

- Acha que prejudico você?

- Acho! Tá me prejudicando!

- Esta é a última coisa que eu quero na vida.

- Eu sei que você não quer fazer isto, mas é exatamente o que está fazendo! Não liga para o que as pessoas pensam! Não te incomoda que as pessoas fiquem fazendo piadinhas de você? E eu vou estar incluído nisso! Acha que isto está certo, você acha?

- É… Você não vai acreditar, mas você cabia aqui (mostrando a palma da mão). Eu segurava você e dizia para sua mãe: “Esse menino vai ser o melhor menino mundo, esse menino vai ser melhor do que qualquer um que conhecemos, e você cresceu bom, maravilhoso! Foi muito legal ver você crescer, foi um privilégio. Aí chegou a hora de você ser adulto e conquistar o mundo, e você o conquistou! Mas em algum ponto deste percurso, você mudou! Você deixou de ser você! Agora deixa as pessoas botarem o dedo na sua cara dizendo que você não é bom! E quando fica difícil, você procura alguma coisa pra culpar, como uma sombra! É… Eu vou dizer uma coisa que você já sabe: O mundo não é um grande arco-íris; é um lugar sujo, é um lugar cruel, que não quer saber o quanto você é durão. Vai botar você de joelhos e você vai ficar de joelhos para sempre se você deixar. Você, eu, ninguém vai bater tão forte como a vida, mas não se trata de bater duro. Se trata de quanto você aguenta apanhar e seguir em frente, o quanto você é capaz de aguentar e continuar tentando. É assim que se consegue vencer.
Agora se você sabe do teu valor, então vá atrás do que você merece, mas tem que estar preparado para apanhar. E nada de apontar dedos, dizer que você não consegue por causa dele ou dela, ou de quem quer que seja. Só covardes fazem isso e você não é covarde, você é melhor que isso. Eu sempre vou amar você acima de tudo. Aconteça o que acontecer. Você é meu filho é meu sangue. Você é a melhor coisa da minha vida. Mas se você não acreditar em você mesmo, nunca vai ter uma vida. (Rocky Balboa
[2])

Conversamos hoje em tom de brincadeira — eu sua mãe e sua tia — sobre o modo como você será educado. Eu brinquei várias vezes dizendo que eu mesmo ia te dar quedas, chutes na cabeça e voadoras. Sei que soa duro, mas realmente pretendo fazer isto[3]. É bem provável que eu nunca seja o pai dos seus sonhos, é na verdade muito muito provável que em vários momentos de sua vida você me odeie. Mas Curinga, entre todos os títulos/adjetivos que tenho ou que um dia eventualmente possa ter, orgulha-me apenas um: Sou um homem livre, filho de Nazareno e Fátima e pai de Gabriel. Eu não quero te forçar a ser um homem livre, pois fazer isto seria uma contradição — mesmo que bem intencionada — mas saiba que meus maiores anseios são prepará-lo para aguentar a apanhar da vida, assim como ela me bateu, afinal, comigo houveram algumas segundas chances, mas isto normalmente não acontece. O mundo não está interessado em quantas tempestades você enfrentou, ele quer saber se você trouxe o barco ou não.

Pode não parecer meu Curinga, mas estarei SEMPRE e SEMPRE com você e principalmente por você. Nem te conheço pessoalmente, mas você não tem ideia do quanto já te amo.

Até amanhã filho!

Todas as honras para o mais novo Curinga, pois a ele pertence o futuro!

Praia de Baixa Grande

[1] Pesquise o que é isso. Tenho certeza que ninguém fará ideia dessa gíria em sua época.

[2] https://www.youtube.com/watch?v=jF9_7OWogIE (se este link ainda existir quando você olhar isto).

[3] A maioria das vezes metaforicamente, é claro.

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Samuel Lemos
{DEi | CHÁ}

Pai de Gabriel Curinga e nas horas vagas, ArCaNj0 Pescador de Ilusões.