Salvos por Bukowski

Márcio Rocha Nery
{DEi | CHÁ}
Published in
4 min readMay 10, 2016
Fonte: http://meuinutil.blogspot.com.br

A princípio era só um casal. Simpático até. Eu já o havia visto uma vez num treino em que visitávamos sua academia. Ela eu jamais tinha visto. O campeonato só começaria no dia seguinte e ficaríamos todos (várias academias) alojados em um ginásio. Colchonetes, banheiro coletivo, o pacote completo de viagens assim. Adoro tudo isso. O clima de descobertas, de novas amizades, de novos lugares, tudo isso supera as más acomodações e o desconforto. Havia passado boa parte da minha vida nessas viagens com o teatro. E agora, adentrando ao clube dos quarentões, me via calouro de uma nova estrada: O Taekwondo. Seria esta minha primeira competição fora do meu estado.

Bom, estávamos, eu e o casal nos encarando. Eles às voltas com um colchão inflável. Me propus ajudar e assim, logo o colchão estava pronto, inflado e convidativo. Estávamos em um grande salão onde ao redor das paredes foram se enfileirando colchonetes e formando um grande alojamento. O casalzinho se ajeitou, e como tínhamos uma longa tarde e noite pela frente sem nada pra fazer naquela cidade, trataram de aproveitar o momento e ficaram lá no seu namorico. Percebi, da parte dela um insistente e simpático olhar pra mim. Como eu sou o temporão da família, todos me observam muito onde nossa delegação chega. O primeiro susto é ver um quase senhor de 39 anos rodeado por uma pivetada que não chega aos 18. O segundo é perceber que o tiozinho é o mais criança de todos.

Por volta do meio da tarde já entediado chamei os menores (6 a 9 anos) e dei inicio a uma interminável lista de brincadeiras populares do meu tempo de criança (tempo em que brincávamos uns com os outros, sem os filtros dos aparelhos eletrônicos). Manja, barra-bola, quatro cantos e por aí ía. Aos poucos todos estavam ao redor me observando brincar de igual pra igual com os pequenos que tinham como maior troféu me verem no centro do circulo como o bobo. Os olhos do casal não saíam de cima de mim.

À noite percebi algo de estranho no casal, um distanciamento, e a vi de conversa com um rapaz de outra delegação. O suposto namorado dava claros sinais de contrariedade. E logo depois partiu pro revide. Armou-se de uma alegria meio teatral e nos provocou todos a sairmos pra comer algo e tomar umas. Depois das habituais consultas às respectivas panelinhas formou-se um grupo de uns 10 ou 12 no qual não se incluía a moça. Eu obviamente aceitei o convite pois não lutaria no dia seguinte e estava de boa.

Na incerta busca pelas ruas da desconhecida cidade em busca de um lugar interessante, algo de muito estranho ocorreu. O rapaz simplesmente coloca seu braço por sobre meu ombro como se fossemos amigos de longas datas e começa a agir como a me paquerar. Aliás, ele estava nitidamente me paquerando, tentando me seduzir. A princípio tomei sua atitude por uma brincadeira, visto que alí a maioria sabia da minha aberta sexualidade. Mas ao passo que a noite avançava ele só ía confirmando e sendo mais claro na sua abordagem. Ao observar a reação de seus amigos ficou claro pra mim que ele não tinha hábito de ficar com pessoas do mesmo sexo. As caras eram de total descrença sobre o que estavam vendo. Havia até um certo constrangimento no ar. Principalmente da minha parte.

Na volta pro ginásio comecei a perguntar a real. Se ele era gay, se já tinha se relacionado com outros caras e tal. Ele escorregava nas respostas dando a entender uma experiência, que eu sabia, ele não tinha. Me chamou pra ir com ele ao banheiro. Recusei e me afastei. Não estava ali pra esse tipo de coisa. Nesse interim a tal moça reaparece e passa por mim sem me cumprimentar. Aí caiu a ficha. O sacripantas estava me usando pra fazer ciúmes à outra. Só tinha algo estranho nisso: a minha escolha para esse papel. Qual hétero iria se expor dessa maneira apenas pra fazer ciúmes a uma garota? Porque não outra garota?

Fiquei muito puto com aquilo. Agora além de ter sido alugado a noite toda, o que me impediu de outras paqueras, não tinha a mínima chance de rolar nada com ele e a menina agora estava de tromba comigo. Que noite proveitosa. Saí puto e fui conversar com os garotos de outra delegação. Percebia um certo movimento nervoso entre ele e ela. Início de um dialogo que ela interrompeu, e eles olhavam pra mim e me apontavam. Aquilo já era demais. Sai pisando duro, decidido a chamar a menina pra uma conversa bem sincera já que com o garoto eu não queria nem papo.

Aproximei-me dos dois e a menina baixou a vista quando cheguei. Falei oi, ela respondeu de má vontade. Baixei a vista também, nem sabia por onde começar. O rapaz mantinha-se em silêncio, alternando seu olhar entre mim e a garota. Foi quando eu vi. Ela segurava em sua mão direita, usando o dedo médio como marcador, um volume marrom. Um livro. Na capa estava escrito em letras garrafais douradas: BUKOWSKI. Não resisti. Pedi pra olhar, ela muito surpresa deixou. Era uma edição de Misto-quente. Nossa! Eu acabara de ler aquele livro. Dei um sorriso, e o devolvi com o seguinte comentário:

- Terminei essa semana. Muito bom. Com o velho Buka você está em ótima companhia — e olhei com desprezo para o rapaz. Ele entendeu, e se retirou calado.

Dois amantes da literatura… dois amantes de Bukowski haviam se encontrado em um velho ginásio repleto de atletas juvenis. Quem poderia ir contra a força dessa conversa? Ninguém, muito menos o indeciso e enciumado pobre rapaz.

Iniciamos uma conversa ali mesmo e em minutos éramos amigos de infância. Como acabamos, os 3 dormindo no colchão inflável e nos tornamos grandes amigos, não cabe aqui ser relatado. Apenas devo reforçar que, se hoje cultivamos um enorme carinho uns pelos outros, devemos isso ao velho Bukowski.

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Márcio Rocha Nery
{DEi | CHÁ}

sou um pisciano tão pisciano, que depois de dito isto, tudo o mais seria redundância...