Sobre sair do armário

Márcio Rocha Nery
{DEi | CHÁ}
Published in
5 min readMay 14, 2016

Ou as duas faces de uma mesma história

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Ser gay sempre foi um desafio. Dependendo da época, lugar e família em que você nasceu, ser gay pode ser até uma sentença de morte. É incrível como hoje ainda vemos as pessoas falarem em opção sexual, como se alguém em sua sã consciência viesse ter a infeliz ideia de “virar” veado. Não, ninguém vira veado. Nasce.

Nascemos assim e ainda não obtivemos resposta nem da ciência nem da religião para esse “fenômeno”, o que nos obriga, a inventar ou se agarrar a alguma justificativa que retire de nós essa ”culpa” e nos permita sermos nós mesmos com a dignidade necessária para que nos sintamos parte de uma raça ou sociedade, e não um erro genético ou danação do diabo.

Aceitar-se pode ser uma tarefa bem difícil. Muitos passam uma vida inteira sem criar coragem de peitar o espelho, se olhar olho no olho e proclamar: “Você é veado. Você é veado e isso não faz de você nem pior nem melhor que ninguém”. Aos que aceitam o desafio, resta a tarefa de descobrir como fazer essa abordagem.

O engano mais comum nesse processo é o jovem (às vezes nem tão jovem) achar que essa abordagem se refere aos outros. Como vou contar pra minha mãe? Como terei coragem de dizer pro meu pai? Como meus colegas da escola irão reagir a isso? Como minhas tias, tios, primos e avós irão me tratar quando/se souberem?

Muitas vezes esquecem de se perguntar: Como eu agirei em relação ao mundo e às pessoas ao meu redor, quando tiver coragem de me assumir? De que maneira me colocarei ao mundo buscando um convívio harmonioso (sim, eu acredito que isso é possível e necessário) sem abrir mão de ser quem eu sou?

Usarei minha própria história como exemplo.

Aos 18 anos de idade, eu me encontrava na seguinte situação de vida: terminando ainda o ensino médio, eu acabara de conseguir emprego num importante equipamento turístico. Tal emprego me dava a benesse de sair de casa e morar no próprio complexo turístico onde trabalhava. Uma liberdade e empoderamento jamais imaginados. Naquele momento da minha vida já sabia a muito tempo do meu interesse por pessoas do mesmo sexo e já tinha tido até algumas experiências homo, apesar dos vários e curtos namoricos com meninas.

Logo ao chegar ao novo emprego, um pouco por ego, um pouco por simpatia e um muito por pressão dos colegas, comecei a namorar com a mais linda das garçonetes. Éramos o casal modelo do restaurante. Todos nos paparicavam e exaltavam o quanto éramos um casal lindinho e fofo. Na superfície eu vivia quase um sonho de verão. Mas na profundidade…

Com a mesma rapidez com que comecei o namoro com a menina, fui “seduzido” pelo “Gay” da casa, um garçon que, pra ser conciso, era o estereótipo do veado: alegre, espontâneo, engraçado, prestativo e barulhento. Passei a ter uma vida dupla. Vivia o galãzinho do restaurante com minha namoradinha perfeita e, sempre que tinha oportunidade, me engalfinhava pelos cantos com o garçon. Emoldurado esse painel, eu amargava uma tórrida, febril e secreta paixão pelo meu melhor amigo, que sequer desconfiava da minha panssexualidade.

Todo esse universo de máscaras, mentiras e incertezas na cabeça de um mocinho de 18 anos era um peso quase insuportável. Mas o que mais doía era o peso de saber que pelo menos metade das pessoas ao meu redor sabiam ou desconfiavam que eu curtia homem. Em todos os ambientes em que eu estava, convivia com a sombra de pessoas sussurrando às minhas costas. Passei a me isolar do grupo, que era muito festeiro. Passei a não ir mais às baladas a ponto de minha namorada muitas vezes decidir sair com nossos amigos enquanto eu ficava em casa sozinho, ouvindo Legião Urbana e fumando quantidades industriais de maconha (da boa, naquela época).

Passei a me tornar irascível com todos. Achava todos uns falsos que levavam a vida a falar mal da minha. Em pouco tempo eu os odiava e trazia sobre mim sua antipatia. Por sorte ou destino, fui demitido.

Como, apesar de muito jovem, era uma funcionário eficiente e prestativo fiz boas amizades entre os hospedes mais habituais, e em 48 horas já me achava empregado novamente. Só que numa função que jamais exercera, e em… Fortaleza. Sim eu tinha 3 dias para arrumar a bagagem e partir para a capital. E foi isso que fiz. Passeio dois anos por lá.

Nesse período provei de tudo. Aprendi na porrada e me descobri de diversas formas. Amei uma mulher, fodi com muitos homens. Aos poucos fui me assumindo para os mais próximos e quando ao final desse período, atendendo a pedidos da família, decidi voltar ao meu torrão natal, era um homem.

Logo que voltei, uma das primeiras coisas que fiz foi visitar meu antigo emprego/casa. De imediato veio o convite a que voltasse a me juntar a equipe. Aceitei com prazer. O elenco era basicamente o mesmo. Minha antiga namorada havia casado com um dos meus melhores amigos daquela época, o que para ela era motivo de grande constrangimento, e pra mim um alívio. Em menos de 48 horas, em conversa informal e pessoal fui contando a todos da minha orientação sexual. Uns receberam com susto, outros com aquele ar de “eu já sabia”. De uma maneira geral, todos reagiram maravilhosamente bem à novidade. Até a ex, agora mãe de um lindo bebê.

Mas a epifania, a hora mágica, o ponto alto dessa história, se dá exatamente aqui. Mais uma vez eu era o centro das atenções, todos faziam questão de me convidar pra tudo. Nada acontecia ali sem minha presença e às vezes, comando. Eu era o CARA. Alegre, sagaz, engraçado, irônico, safado, pegava meninos e meninas. Era o herói dos solteiros e a admiração algo invejosa dos casados. Todos me amavam. E eu os amava com todo meu coração.

Mas qual milagre se operou? Eram as mesmas pessoas, o mesmo lugar, as mesmas situações de trabalho e convívio. Todas aquelas pessoas antes invejosas e fofoqueiras agora me apoiavam e amavam. Tornavam-se cúmplices dos meus rolos, indicavam pessoas…

O milagre era eu. Eu desnudo de máscaras. No instante em que eu me revelei em minha verdade, passei a construir com aquelas pessoas uma relação de confiança. Antes todos sabiam de mim, mas eu mesquinhamente lhes sonegava essa verdade. Eu via em cada pessoa um traidor porque não agia com verdade com eles. Agora partilhávamos. Eu havia confiado a eles o meu mais sagrado segredo (quem ainda não saiu do armário há de advogar que não estou exagerando) e eles me protegiam e apoiavam. Ali, com aquelas pessoas, onde amargara um inferno, vivi os melhores dias da minha vida.

Muitas vezes nos preocupamos tanto com o que os outros vão pensar, que baseado nos nossos medos, julgamos erradamente a capacidade de compreensão e aceitação das pessoas, causando a nós mesmos um enorme e desnecessário sofrimento e a elas a sensação de que não as amamos de verdade, do contrário não temeríamos confiar.

Sair do armário não é apenas contar pras pessoas que você é gay, é mais que isso. É, em primeiro lugar, contar isso pra você. Discutir isso com você, e após essa DR, partilhar esse seu lado com as pessoas ao seu redor, não como um delito, mas como um troféu. Ser gay é o que faz de você o que você é.

As pessoas podem até te amar, “apesar de você ser gay”, mas você deve se amar, não “apesar”, mas “por” isso.

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Márcio Rocha Nery
{DEi | CHÁ}

sou um pisciano tão pisciano, que depois de dito isto, tudo o mais seria redundância...