Henri Cartier-Bresson por René Burri, 1959 {para uma metalinguagem da fotografia}

Voyeur

Álisson Oliveira
{DEi | CHÁ}
Published in
4 min readJul 27, 2016

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Eu estava cuidadosamente atento ao horário do expresso noutro dia desses num terminal qualquer quando do meu lado se sentou uma senhora idosa muito bela. Ela cheirava agradavelmente à capim-limão, ou à qualquer outra coisa cítrica dessas que se compram baratinho em revistas de porta a porta.

Estranhamente todas as cadeiras estavam vazias. Nunca tinha visto o terminal rodoviário tão deserto como uma casa desabitada. Pois bem, sentou-se ela com seus cabelos brancos e vestido floral. Nos pés chinelos de couro e nas mãos algumas fitas de São Francisco coloridas. “Procurando por segurança…” — Julguei. Mas se tivesse optado por outro local, ela poderia muito bem ter escolhido o melhor e mais recôndito espaço daquele imenso lugar: próximo as lanchonetes, junto ao posto dos vigilantes, mas não, ela escolheu se instalar ao meu lado.

Acomodada, observei-a de soslaio. Seu braço tomou o descanso único da cadeira quase sempre gentilmente disputado e impossível para dois sujeitos. Retirou da bolsa démodé, dessas de material sintético comprado em feiras de rua, um pequeno pente fino para os cabelos que agora me pareciam fios d’ouro. Na outra mão, sustentava um espelho pequeno e manchado a refletir uma outra existência, uma outra vaidade.

Nesse ínterim, sequer houve rumores de algum: “boa tarde?”. Ela era etérea com aqueles objetos nas mãos, uma Iara secular com traços firmes de vivências e postura cansada. Vi-me testemunhando uma figura possível de imaginar: a do contraste sereno e severo entre duas gerações, dois seres completamente estranhos que se passavam facilmente pela composição familiar de mãe e filho.

Ela não falava e eu sequer buscava de algum modo querer romper com aquela barreira. Havia sim entre nós um acordo mútuo de concessões. Eu estivera ali a esperando para ser sua companhia. E ela chegara ali mesmo para ser a minha inspiração para esse texto. Nós éramos, em suma, dois anônimos, obscuros, mudos e itinerantes.

Não tardou e chegou outro senhor. Sua aparência era a de um velho preocupado. À duas cadeiras ao lado oposto de minha atual companheira, ele se sentou. Reparei atento e vi nos seus olhos distraídos de mim um aceno de aflição. Era o bilhete de embarque que ele procurava. Sossegado esteve quando repentinamente o identificou muito bem dobrado dentro do bolso esquerdo da blusa de algodão. Os olhos conferiam, numa análise rápida, a indicação certa da plataforma, dos horários e do possível destino.

Ao meu lado, na outra fronteira estava ela. Agora muito bem alocada com suas imensas nádegas e cheirando a folhas de limoeiro, ajustando o vestido como quem se põe pronta para um primeiro encontro. Ansiosa? Talvez. Reparei que em seus lábios finos, quase serrados, haviam uma pequena camada vermelha de batom que ela insiste em atritar para dar uniformidade ao tom.

Quando menos esperei e retornei minha visão ao outro lado, vi meu amigo de posse de alguns guardanapos sobre uma das pernas agora levemente cruzada sobre outra enquanto apoio. Na mão, uma caneta frívola registrava as ideias daquela mente parca de memórias à longo prazo. Nela estavam os conhecimentos do mundo. Todos os exercícios de sabedoria, todas as fórmulas e soluções. Ele era o mentor psicografador de pensamentos inconcebíveis por mim e por quem quer que fosse. Há quem denomine esses tipos de sentimentos de “finitude”, como bem observou Martha Medeiros em sua crônica homônima, há quem sequer pare para buscar nesse efêmero instante uma significação. Eu, porém, vi um guardanapo simbólico, epifânico.

Os fatos narrados podem não lhes parecer importantes, mas isso não me importa, visto que eles foram testemunhados por mim e foram para mim representados. Com isso, penso nesse anonimato diverso que anda por entre terminais e ruas, lojas e hospitais e que nos é impossível de apreender, pois somos milhões, bilhões no mundo incapazes da amplitude para além de nós mesmos. O que então aprenderíamos nós se nos fosse dado absorvê-los? O que seríamos nós nessa experiência metafísica?

Cruzamos a vida de milhares de pessoas e sequer nos damos ao trabalho de reparar na poeticidade de suas ações ou de selecionar aquelas que nos inspirariam ser semelhante ou não. Levamos o instante tão a sério que o mínimo olhar nos parece um risco grandioso, talvez um exercício perdido para aqueles que só aprenderam a espiar a vida no pulsar dos ponteiros de um relógio. E assim, seguimos com esses pensamentos encabeçados em outras tantas coisas desnecessárias e tão plásticas quanto os quadros modernos que nos envolvem de ilusões.

Talvez eu fosse mesmo um desses flâneurs que andam por aí ociosos, absorvendo existências diversas se cruzarem, observando o que se revela em vidas alheias que tomaram rumos desconhecidos e que jamais tornarei a ver novamente.

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Álisson Oliveira
{DEi | CHÁ}

Professor de literatura, ilustrador e estudante de design gráfico. Vintage; avant-gard; Kubrick; paroxetina; queer; Bauhaus; Esher; Taxi Driver.