Carla Guerson
Coletivo Escreviventes
3 min readAug 23, 2021

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Confesso

Confesso que não sei quem eu sou. Meu conceito próprio está sempre mudando. Escrevo para me descobrir e para dar vida àquelas que vivem em mim. Tenho encanto pelas pessoas − caminho sem volta — e gosto de ouvir todas as versões. Minha preferida nem sempre é a mais bonita. Geralmente, é a mais incômoda.

Confesso que amo meus seios, mesmo caídos, depois de amamentar os serezinhos que hoje me chamam de mãe, incessantemente. Amamentei incessantemente ou o chamado que é incessante? Acho que o duplo sentido veio bem a calhar. Os seios abrigaram o leite enquanto o peito abrigou o medo do desconhecido, a saudade, o vento frio que bate quando a gente fica sozinho. Ou o aperto quando a gente fica acompanhado demais. Não tem nada mais solitário que a maternidade.

Confesso que o que eu escrevo tem muito mais de mentira do que de verdade. Mesmo que seja autobiográfico, como agora. A verdade que eu vejo é a mentira que eu escolho contar para mim mesma. Foi de tanto mentir (para mim? para os outros?) que decidi me assumir escritora. Transformar a mentira em arte. Reinventar.

Confesso que o estranho me atrai. Quando me pediram para escolher um animal preferido, escolhi um mosquito, porque a beleza não me interessa se for banal. O que me interessa é o incômodo revisitado, poetizado, romanceado. São três adjetivos para o mesmo substantivo, eu sei. Ouvi dizer que o mosquito não tem razão de existir, só serve para transmitir doença e não consigo imaginar uma finalidade mais perfeita do que essa. Um transmissor. Todo mundo transmite suas doenças, suas dores, suas esquisitices.

Confesso que escrevo para me materializar uma transmissora e sigo aí transmitindo minhas frustações, meus medos, minhas loucuras. Para os meus e para os outros. Como um mosquito. Se incomodo, que ninguém me mate só por incomodar. Os incomodados que se retirem. Se eu tivesse que me retirar quando me incomodo, teria que sair de mim. O que é sempre uma boa ideia.

Confesso que o ser mulher me atravessa e que não me encontrei na maternidade. No entanto, a maternidade invade minha literatura, seja na posição de mãe, seja na posição de filha. O que me encanta, me espanta. O que me atrai, me dá ojeriza. Quero e não quero na mesma intensidade. Meus filhos me ocupam demais, uma presença excessiva, quase incômoda. O quase já me trouxe a mentira que eu precisava. Por outro lado, eu sinto uma grande falta. O vazio que ser mãe me deixou não cabe em meu peito. É devastação pura.

Confesso que, embora não escreva sobre mim, todos os textos me perpassam. No papel, deixo o que não ouso viver e isso de alguma forma me satisfaz. Estou presente na escrita como nunca estive. Na vida, a ausência me persegue lado a lado com a presença excessiva. Alterno os dois estados na busca desse equilíbrio louco que nunca consegui encontrar. Sou de extremos.

Confesso meus incômodos. Meus defeitos, minhas virtudes. Não venho ao papel sem me derramar. A melhor parte de escrever é poder editar, por isso não escrevo à caneta. Difícil é não poder editar o que eu vivo. Minha mania estranha é justamente esta: gosto de ficar imaginando que uma cena poderia ser diferente. Uma história, um livro, uma frase. Uma pessoa. Eu nunca me satisfaço com a primeira versão, nem de mim mesma. Especialmente de mim mesma.

A palavra incômodo e suas variáveis apareceram nove vezes neste texto, assim como a palavra confesso.

Incomodada sou, confesso. Dez com essa.

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Carla Guerson
Coletivo Escreviventes

Feminista, escritora, geminiana, mãe, leitora compulsiva. A favor dos incômodos. Autora dos livros “O som da tapa” e "Fogo de Palha".