Da minha janela, ouço o teu sorriso

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Coletivo Escreviventes
6 min readFeb 13, 2024

Nunca mais te quero ver, berrou antes de bater com a porta. Com força suficiente para acicatar a cusquice da vizinha do segundo andar, que, furtiva, abriu uma nesga da porta na tentativa de amaciar o frémito impaciente que a invadia. Nada feito. Vantagens do rés-do chão que, antes de a vizinha impertigada se pôr a jeito, já Joana abria a porta do prédio e o ar frio de Dezembro lhe secava os restos de lágrimas e ranho que lhe sobejavam no rosto. Fiquei sozinha a remoer a culpa que não tinha, a recordar as palavras que pensava apenas um amuo momentâneo e não uma zanga de vinte anos.

Traíste-me. As amigas a sério não traem, Não te traí, só te mostrei a verdade. As amigas a sério mostram a verdade, tentei explicar. Não tive êxito. Nunca mais te quero ver. E nunca mais viu. Saiu azeda, zangada, com ares de vítima incompreendida a que a vida tinha negado a razão. Não me procurou. Telefonei, não atendeu, enviei mensagens, todas lidas, nenhuma respondida. Tudo isto numa semana, o ímpeto dos trinta anos. Tentei mais tarde, já na ponderação dos quarenta anos, todavia a ausência de resposta mantinha-se. Acompanhava a sua vida perfeita na comoção das redes sociais. Casamento, filho, outro filho, não, filha, não, gémeos, daí a confusão, foto da lua-de-mel de sonho, mas o marido é outro. Estranho. Foto do divórcio não há, obviamente, minudência pouco útil para angariar seguidores. Alvitrei a hipótese de ter mudado o número de telefone e, por isso, não atender o telefone. Nada mais errado. A imagem associada ao número é a dela. A Joana, a minha amiga de infância, que se zangou comigo, porque lhe abri os olhos e ela não gostou de enxergar a verdade. Dói, amachuca o ego, amarrota a compostura. É mais fácil bater com a porta e ignorar sucessivas tentativas de contacto.

Porém, ontem, foi diferente. Foi o meu telefone que tocou e no visor estava escrito «Joana». Sem apelido, sem referência alguma. Não era preciso, só ela era a Joana. As outras dezenas de Joanas que fui conhecendo eram as Joanas Qualquer Coisa. Atendi, num alvoroçamento confuso, que a acalmia dos cinquenta anos já não deixa transparecer. Pelo menos, assim eu pensava. Que precisava de me dar uma palavra, que era urgente «Não, não é dinheiro, não te preocupes, que não te vou pedir nem um cêntimo.» Não lhe perguntei nada para aquele parêntese. Tentei tirar nabos da púcara, mas o legume entrou em desuso e não consegui mais do que um «Podemos encontrar-nos amanhã? Às sete?» Não via problema algum, saio do trabalho às seis, por isso dá para «Da manhã», atalhou ela. Não compreendi, no entanto, acedi. Rabisquei a morada numa factura de água perdida em cima da mesa da sala e fui dormir. Deitar-me, que o sono é relutante quando mais dele precisamos.

Na manhã seguinte, pus-me a caminho, a pé, para dar tempo à mente de lá chegar. A porta estava aberta. Imprudente, como só ela sabia ser. Entrei, uma sala vazia, o violoncelo pousado lá ao canto. Não sabia que ainda tocava. Foi na orquestra juvenil que nos conhecemos. Tão diferentes, o violoncelo a aproximar-nos, e depois tudo o resto. Uma ninharia a separar-nos e agora… Entra, ordena lá do fundo, invisível pela soleira da porta. Não dei um passo. Não tenhas medo, apaziguou-me. Estou sozinha e não posso com uma gata pelo rabo. Não era o que estavas sempre a dizer? E assomou, com um sorriso impossível de resistir. Um abraço do tamanho de vinte anos tomou conta de nós. Senta. Desta feita, obedeci. Ela sentou-se, também, olhos nos olhos, silente. Algumas rugas, outras tantas mágoas, mas dir-se-ia termo-nos visto na véspera. Como se a vida rebobinasse à espera daquele encontro adiado, não esquecido. Joana, eu, Não digas nada, Mas eu nunca te expliquei, Eu depois percebi, Percebeste?, Às vezes, só precisamos de tempo para perceber as coisas, Nunca mais falaste comigo, Há pessoas que demoram mais tempo, Mas, Tu não me traíste, eu sei que não, Pois não, mas, Tu foste para a cama com o meu namorado para me provar que ele ia com a primeira que lhe aparecesse à frente, Dito assim, Desculpa, não era para ser tão fria. Mas eu percebo. Juro que percebo. Passados estes anos todos, eu percebo, E não chegámos mesmo a… tu sabes. Era só para tu veres. Se calhar, há maneiras melhores, mas não me lembrei de nenhuma, Já tomaste o pequeno-almoço?, Comi qualquer coisa, menti. Vamos para a mesa, convidou ela. E, por detrás da porta, um dejejum digno da última ceia aguardava-nos.

Obrigada por vires. Serve-te. Há arrufadas, que tu adoras. Quer dizer, adoravas. Ainda gostas?, Adoro, Boa. Então, come. Comemos. Sem vontade, apenas para encher a boca e preencher o silêncio. Até que não aguentei mais. Levantei-me, aproximei-me dela, travei-lhe a trinca na arrufada. Joana, o que é que se passa? Chamaste-me porquê? Vinte anos depois, do nada, chamas-me para tomar o pequeno-almoço? Somos amigas desde os sete, conheço-te um bocadinho melhor do que isso. Vais contar ou vou-me embora?

Levantou os olhos húmidos, pousou-os nos meus, pestanejou para aclarar a humidade, mas o efeito foi o inverso. Limpou a cara às mangas e escondeu as mãos dentro daquelas, hábito antigo que denunciava uma aflição. Saiu da cadeira e calcorreou a sala, hesitante. Decerto procuraria as melhores palavras. A eloquência nunca foi uma fraqueza e, no entanto… Enfim, pára, olha-me, implora-me, sem que eu perceba o quê. Tenho ELA, explica, Quem? Ela, quem?, Não é ela, ela. É ELA, Não estou a perceber nada, parece que ficaste maluquinha, Joana, explica-te lá, Tenho ELA. Esclerose lateral amiotrófica, O quê?, É uma doença. É a doença daquele gajo da cadeira de rodas, do Stephen Hawking, o do universo, todo torto, Eu sei quem é, mas, Óptimo. Pronto, eu tenho o mesmo, Como é que sabes?, Fui ao médico, fiz exames, muitos exames. Não conseguia tocar violoncelo. Não conseguia pegar no arco como deve ser. Não conseguia segurar as cordas. Era só notas ao lado. Depois deixei cair um copo na cozinha, assim do nada. Detesto partir louça, tu sabes. Depois… Depois que isto só vai piorar. E vai chegar a um ponto em que eu vou deixar de me mexer, deixar de comer, deixar de falar. E depois vou deixar de respirar, porque os músculos não vão obedecer, e nesse dia, puf, acabou-se. Acabou-se tudo, menos eu. Porque eu vou estar um caco velho, mas cá dentro, cá dentro, sei de tudo o que se está a passar, sei de todas as limitações que me vão aparecendo. E não quero ser um fardo para ninguém. E não quero que os meus filhos me vejam a ir embora aos bocadinhos, todos os dias, vai mais um bocadinho. Eu é que tenho de tratar deles, não são eles de mim. Por isso, já decidi, Já decidiste o quê?, perguntei com medo da resposta. Vou acabar com tudo antes disto começar, O que é que queres dizer com isso?, Pus uma droga no chá. Só no meu, não te assustes, O que é que queres dizer com isso?, Que isto não vai chegar a começar, porque eu não vou deixar, Estás louca? Vou chamar o 112, eles têm de fazer alguma coisa, eles têm de te salvar, eles, Pára, estás histérica. Assim é pelo melhor. Confia em mim, Porque é que me chamaste?, Porque era contigo que queria estar neste momento, era contigo que fazia sentido. Passámos tantas coisas juntas, Vão achar que fui eu, Impossível, deixei uma carta. E, quando acabar, vais-te embora. Ninguém precisa saber que estiveste aqui. Confia em mim. Confia em mim como eu não confiei em ti há vinte anos. Podemos sentar-nos ali à janela? Estou-me a sentir mole, O que é que tu sentes, Joana? O que é que eu faço?, Calma, não fazes nada. Dá-me um abraço. Vamos só ficar a olhar para as árvores, pode ser? Aconchegadas uma na outra como antigamente. Pode ser?, Mas, Joana, Pode ser?, Enfim, aceitei. Pode, Então, vamos.

Deu-me o braço, já cambaleante, sentámo-nos no sofá em frente à janela, aninhadas uma na outra, os cabelos misturados. Tudo me parecia um sonho de que iria acordar em breve. Dir-se-ia que também eu bebera um chá, mas para anestesiar o siso. De súbito, uma dúvida acudiu-me à mente. Joana?, Sim, Como é que me vou lembrar de ti?, Alguma vez te esqueceste nestes vinte anos?, Não, mas… É diferente, Abres a janela, O quê?, Quando te quiseres lembrar de mim, abres a janela, Para quê?, Abres a janela, fechas os olhos e ouves, Ouço o quê?, Ouves, Mas o quê? Não respondeu. Joana? Estava sossegada, encostada ao meu ombro, olhos fechados, sorriso aberto. Apertei-a com muita força, tanta até gastar toda a que tinha. Deixei-a bem posta, vim para casa, abri a janela, fechei os olhos e ouvi. Da minha janela, ouço o teu sorriso.

autora: Rafaela Lacerda

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Coletivo de Escritoras, reúne mulheres de todo o Brasil, de várias faixas ​etárias e momentos da carreira.