Escuro no fim do túnel

por Fernanda Germano (@fernandagermanno)

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Coletivo Escreviventes
4 min readJun 18, 2024

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Às vezes, a gente só se encontra quando se perde, vovó me disse.

Mas vó, isso não faz sentido!

Ceci, faz todo o sentido do mundo… você já reparou que todos os movimentos que a gente dá em direção à mudança vêm depois de uma decepção muito, muito grande? Sem perda não existe avanço…

A vida era toda um labirinto. Feita para perder-se de si, perder-se da própria vida. E era gelada: o vento, cortante, não deixava espaço para o carinho; cortava da pele à paciência, deixava-me com um caroço de azeitona na garganta, um engasgo, que nada mais era do que…

Ansiedade, Ceci…

Vó, a senhora não está entendendo… como pode eu perder tudo, ir pouco a pouco deixando de ter o que eu tive e ainda assim ficar feliz com isso, pois “a mudança virá”?

Ceci, é angustiante, eu sei. Mas as coisas boas levam tempo… notícia ruim é que chega rápido.

Vovó se conformava com a situação que ela via acontecer há tempos.

Em setembro, uma primavera fria e úmida me despertava para viver. Queria experimentar tudo, testar limites, sair da casa em que meus pais me aprisionavam como se fosse carinho e apenas encontrar uma saída para o labirinto em que eu me metera desde criança — a perfeição.

Sentei-me na última fileira da concha acústica, para ver um show de samba orquestrado que, alguns anos antes, nem me chamaria a atenção. Menti, dizendo que iria a um aniversário da minha melhor amiga. A gente só se encontra quando se perde, vovó me dizia em mente. Caía uma chuva no início, tímida, virgem de qualquer malícia. Eu olhava as mensagens: zero. Ele não vem, Ceci, acorda, mamãe me aparecia na imaginação. Começaram os músicos: organização sem defeitos, nada fora do lugar. Orquestras não são labirintos; tudo deve funcionar perfeitamente bem; um passo fora e o espetáculo está arruinado. Mas a vida não é uma orquestra, a vida é um labirinto.

O casal da direita encontrava na chuva um motivo para reacender qualquer coisa que lhes faltava. Dançavam no ritmo, teriam feito aulas numa tentativa de reconexão após tantos anos de casados. Eu os olhava perplexa. Há tanta vida na vida de certos alguéns…

E meu celular: nada.

A chuva engrossava, pingos repletos e pesados caíam nas superfícies já molhadas. As pessoas começaram a fugir, esconder em locais parcialmente cobertos… Algumas se protegiam com sacolas plásticas nas cabeças, outras, mais prevenidas, abriam os guarda-chuvas. Enquanto eu, sozinha, esperava. Esperava a saída dos caminhos vir até mim, abrir-se frente aos meus olhos e dizer agora sim, vai! E minha tela apagada, nenhum sinal de vida.

A música ficava mais intensa à medida que subiam ao palco artistas renomados do samba brasileiro contemporâneo. Comecei a notar palpitações, dores no tórax… eu estava… me perdendo? Era o prenúncio: ele. Vejo uma mensagem:

Vem aqui pra casa…

Em um salto, não vi mais nada. A chuva, a plateia, o casal que dançava, tornaram-se pinceladas distantes, fora da realidade. O que eu via era ele: ele me queria, afinal de contas. Corri pela avenida, ensopada, só o que importa é ele, só ele, ele me quer, tá vendo mamãe? ele me quer!, sem pensar em virar as esquinas erradas, buscando encontrar o que havia se tornado toda minha vida: ele. Cheguei a uma rua fechada de árvores, com poucas casas, ninguém por ali. Estava num labirinto físico, cuja saída eu sabia onde ficava — longe dali. Ele morava no final do caminho escuro. Mato por todo lado, calçadas esburacadas, lixos abertos revirados por gente, revirados por animais.

O escuro no fim do túnel. Cheguei ao portão branco, levada pela necessidade de ser escolhida, de ser eu a escolhida, necessidade de perfeição. Aprisionada em mim, eu não mais existia.

E se eu avisar “estou aqui” e ele não perceber?

Era sempre um risco.

E se eu voltar atrás nesse labirinto de rua e tomar um café quente?

Era sempre uma vontade de fuga.

E se eu… me encontrar?

Era sempre longe dali.

Desisti de apertar a campainha. Voltei nos passos que havia dado. A mesma avenida, agora mais clara. Placas de videntes, anúncios de pastéis e pipoca, guardas de estacionamento. Tudo tão claro, tudo tão óbvio. A música se aproximava, eu tinha vontade de dançar. Com ele, mamãe, eu nunca podia dançar… Sentei-me no mesmo lugar. O casal ainda se enlaçava. A música, agora mais intensa, mais feliz. A vida não é uma orquestra, Ceci… organizada, perfeita. Não é triste o tempo todo também… é bem possível fazer uma melodia feliz.

Notei que perdia muito naquela noite.

Às vezes, a gente só se encontra quando se perde, vovó me disse. E agora eu entendia: é preciso perder as chegadas para encontrar saídas.

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Coletivo Escreviventes

Coletivo de Escritoras, reúne mulheres de todo o Brasil, de várias faixas ​etárias e momentos da carreira.