Julgamento

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Coletivo Escreviventes
4 min readFeb 13, 2024

autora: Jenny Rugerony

Eu estava no escritório quando o telefone tocou. Era meu filho, com voz aflita, perguntando se eu voltaria logo para casa. Ele nunca me ligava no trabalho, exceto em caso de emergência. No horário normal, respondi. Então ele soltou a notícia de uma vez.

- Vem logo, mãe… Lembra do Gilberto, marido da Dandara? Ele se matou…

Era na semana logo depois da Páscoa. No sábado mesmo, passando de carro pela rua onde Gilberto morava, acenamos para ele na calçada. Eu sabia que estava separado de Dandara, e que os filhos o visitavam todos os dias. Nem me passava pela cabeça que talvez ele estivesse precisando conversar. Nossa amizade havia sido distante, com o devido respeito ao marido de uma amiga.

Quando nossos filhos eram pequenos, Dandara e eu fomos vizinhas de casas geminadas. Eu me lembro dela com vinte e sete anos, falando sem parar, cheia de vida e de energia. Vaidosa, faceira, vestindo roupas coloridas, uma princesa negra fazendo jus ao nome. Na aparência, éramos o oposto uma da outra: eu loira, alta e magra, ela negra, baixinha e curvilínea. Na personalidade, duas sagitarianas, nascidas com menos de um mês de diferença, compartilhando a alegria de viver e uma certa impulsividade ao falar tudo que pensávamos. Nossas crianças ficavam para lá e para cá, almoçando ora na casa de uma, ora na casa de outra. Depois a vida tomou outros rumos; eu me mudei e ela também. Agora a gente se encontrava de forma esporádica, no supermercado ou na fila do banco.

Gilberto era bom, trabalhador, um pai atencioso. Mas notava-se uma incompatibilidade no casal. Ele era tranquilo e caseiro. Ela era uma mulher a quem cortaram as asas, que sonhava com mais do que a pia e o fogão.

Não aguento mais acordar e ver meu marido todos os dias com a mesma cara, dizia ela. Que cara você queria que ele tivesse? Eu respondia, mas compreendia sua insatisfação. Não era eu a mal falada divorciada do quarteirão, vivendo à minha maneira e me divertindo com as histórias que as religiosas donas de casa inventavam a meu respeito? A própria Dandara havia feito algumas críticas aos meus esporádicos e mal-sucedidos namoros: você sabe que aquilo que Deus uniu o homem não separa. E aquele com quem você se casou continua sendo seu marido perante Deus, mesmo que estejam separados. Se você ficar com outra pessoa, está cometendo adultério.

- Pecado é fazer maldade — eu respondia. — É prejudicar alguém, se você tiver como evitar. Falar da vida alheia, por exemplo, é um pecado. E é o que mais fazem por aqui.

Seria pecado Dandara não se adequar aos padrões inventados pela sociedade, mesmo com todas as ideias que foram enfiando na sua cabeça desde menina? Sua luz era grande para ficar trancada numa cozinha, falando com as paredes. Queria voltar a estudar, conseguir um emprego melhor. O marido era contra: para quê? Para esquecer as suas responsabilidades como mulher?

Eu lhe emprestava livros. As irmãs da igreja a orientavam: não se misture com esse tipo de gente. Aquela lá mexe com espiritismo, e se você se juntar a ela, sua vida não vai para frente. Ela era curiosa: me conte, como é sua religião? Qualquer dia eu queria ir lá conhecer, mas o Gilberto não deixa…

Um dia, Dandara conseguiu um emprego melhor. De empregada doméstica em casas de família, passou a ser recepcionista numa empresa. Tinha uma voz bela e expressiva, gostava de conversar, e se adaptou depressa.

O contato com homens e mulheres com diversas maneiras de pensar abriu a sua mente. E as irmãs alertavam: o mundo não tem nada para lhe oferecer. Algum tempo depois, ela se apaixonou por um colega de trabalho e pediu o divórcio. Foi um escândalo. Gilberto tinha sido seu único namorado.

E eu só podia imaginar o que ela estaria passando nesta cidade onde se fala muito e se pensa pouco, onde se oferecem muitos conselhos e pouca empatia, muitos assuntos e pouco amor, muito julgamento, pouca fé verdadeira.

Encontramos Dandara deitada na cama, o rosto sulcado pelas lágrimas. Aos quarenta e dois anos, continuava bonita. Seu vestido estampado, longo e de cores sóbrias, lembrava uma flor tropical. Era tão cheia de vida que mal dava para acreditar que estivesse enfrentando uma tragédia dessas.

- Eu fui a culpada — disse Dandara. — Se soubesse que ele faria isso, teria ficado, teria aturado. Mas pensei só em mim.

- Pelo amor de Deus, não! Casais se separam todos os dias, é normal. Você não pegou uma arma e atirou nele. Ele teve o livre arbítrio. Podia ter se conformado com a separação e refeito sua vida, encontrado outra mulher. Você não desejou isso para ele.

Dandara pediu para meu filho fechar a porta. Queria ficar sozinha comigo.

- Só me diga uma coisa — soluçou, segurando minha mão. — Minhas irmãs e sobrinhas estão dizendo que quem faz uma coisa dessas não tem salvação. Que a uma hora dessas, ele deve estar ardendo no inferno. Você, que estuda sobre os espíritos, o que acha?

Suspirei.

- O que nós sabemos? Na minha percepção, Deus é amor, Deus é Pai. Você, como mãe, com seu amor imperfeito, condenaria um filho ao sofrimento eterno?

- Um homem que estava doente — murmurou ela.

- Sim, um homem que estava doente. O que nós sabemos? O que elas sabem? Onde ele estiver, que as suas preces o confortem, que seu carinho o acompanhe. É tudo que se pode fazer.

Passei pela sala. As irmãs e sobrinhas estavam lá. Ficaram me olhando, com ar de suspeita. Eu era a devassa, a má influência que contribuiu para levar Dandara por um caminho errado. Então aflorou a minha característica sagitariana de dizer o que me vinha à cabeça.

- Vejam se conseguem confortar a Dandara, em vez de ficar falando que ela está errada, viu? Porque senão, logo será ela quem vai ficar com depressão. Tudo que ela não precisa é de julgamento…

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Coletivo de Escritoras, reúne mulheres de todo o Brasil, de várias faixas ​etárias e momentos da carreira.