Morena e Loira

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Coletivo Escreviventes
2 min readFeb 13, 2024

autora: Alexandra Ferreira

Eu e a Alice conhecemo-nos na faculdade — dezoito aninhos e duas mãos cheias de sonhos ainda por viver. Irradiávamos uma alegria que não era destronada facilmente, nem mesmo pelas sebentas rabiscadas de fórmulas ou pelas aulas matinais que assistíamos ainda ensonadas.

Éramos duas belas jovens tímidas e um pouco ingênuas, mas que sabiam bem o que queriam da vida. Ela a loira vistosa e eu a morena de cabelos ondulados e compridos! Esta dicotomia nunca foi assunto entre as duas, mas vezes sem conta tema de conversa entre os nossos colegas que gracejavam com o facto. Eu também o fazia e muitas vezes, quando pretendia identificar a minha amiga Alice dizia:

“- A loirinha que costuma andar comigo!”

Nesse tempo eu tinha namorado e ela recuperava de uma relação. Num olhar desapaixonado, muito mais nos distinguia: — ela era duma cidade do litoral, eu duma pequena Vila do interior, — era boa a línguas, eu apenas mediana, — praticava artes marciais, eu deambulava pela cidade, — eu gostava de álcool e ela não.

Desengane-se quem desacreditar que as aparências iludem, pois nós tínhamos muito que nos unia: — a alegria de viver, — o prazer em conversar, — o gosto pela praia, — dançar, — desfrutar das coisas simples e belas da vida e — muitos, muitos sonhos. Sim, tínhamos a ambição em construir um futuro “perfeito” para nós e contribuir para um mundo melhor e mais justo.

Tagarelavamos muito, sobre um leque muito vasto de temas. Rimos, brincamos, ficamos tristes, caímos e levantamo-nos.

Eu casei primeiro e fui viver para a capital; três centenas de quilómetros solidificaram a distância que já se tinha instalado nos dois últimos anos. Afastamo-nos e eu sofri com a ausência da minha melhor amiga, aquela que lia no meu tom de voz o que a minha alma escondia.

Ela também casou — confesso que quando o conheci senti que não combinavam, mas só tive coragem de lhe dizer, muitos anos mais tarde, após se ter divorciado. Reencontramo-nos quando eu regressei, ela atravessava uma fase menos boa. Ambas éramos mães e lutávamos para nos afirmarmos como profissionais — partilhávamos as mesmas dores, sentimentos, desilusões, alegrias, vitórias e alguns sonhos quebrados ou interrompidos antes mesmo de nascerem.

Desde que nos cruzamos naquela pequena multidão de cento e vinte jovens anónimos, a vida presenteou-nos com caminhos sinuosos que nos conduziram a estradas que nem sempre foram paralelas. Ao fim de três décadas, as pequenas rugas na testa são cúmplices das conversas, os escassos cabelos brancos da maturidade e o olhar da cumplicidade feminina que nos une.

Se mergulhar no fundo do meu “eu” devo encontrar, desacompanhados e envergonhados, pensamentos impuros e críticos que confirmam a nossa humanidade e muitas palavras de elogio, confiança e sentimentos de felicidade e gratidão que afirmam a delícia de sermos autênticas.

A amizade é uma relação singular, e a minha e da Alice tornou-se intemporal e sobreviveu às tempestades da vida!

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Coletivo de Escritoras, reúne mulheres de todo o Brasil, de várias faixas ​etárias e momentos da carreira.