Salão de Beleza

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Coletivo Escreviventes
5 min readFeb 13, 2024

O suor se misturava ao vapor das panelas. Na sala, o grupo de homens vibrava a cada passe certo do seu time. Era uma cena comum. Flor gostava de servir ao marido e seus colegas de futebol. Considerava os homens parte de sua família. Gostava de estar entre os homens, ainda que estivesse na cozinha. Da janela, via o salão de beleza de Odete e o movimento constante de mulheres. Pensava no quão fofoqueiras eram aquelas clientes e cabeleireiras e quanto era sortuda por estar entre homens. Armando sempre lhe aconselhava a não estar entre as mulheres e ela passou a cortar o cabelo no barbeiro do marido e a pintar as unhas em casa. Armando era um homem sábio, os dez anos de diferença conferiam a ele um instinto protetor, sempre cuidadoso com os comportamentos de Flor. Ela se sentia a salvo dos perigos do mundo dentro de casa.

Os quitutes prontos e ela vai à sala. Os homens desviam o olhar para a televisão, pois Flor obstruiu a visão deles por alguns segundos. “Sai da frente” disse o primo de Armando, Marco, de uma maneira um tanto estúpida. Era o jeito dele, ela pensava. O seu filho, Marcelo, com doze anos, esboçava um agradecimento, mas foi rapidamente cutucado pelo pai: “Cala a boca, ouve o jogo”. Flor volta para a cozinha satisfeita por servir bem a seus amigos e aos familiares de Armando que, enfim, eram sua família também.

Enquanto lavava a louça, um movimento do outro lado da rua chamava a atenção. Era Odete falando ao telefone. Parecia preocupada. Flor lembrava das conversas com a cabeleireira. Odete tinha o marido adoecido, a filha adolescente e a mãe idosa. Equilibrava os problemas com a gestão do salão. Sempre sorridente, apesar dos pesares, era um ouvido atento aos dilemas de suas clientes. Assim era com Flor, desde a sua adolescência até quando a jovem conheceu Armando. As dúvidas da jovem tímida eram acolhidas por Odete. Aos poucos, a confidente começou a desconfiar das intenções do homem. “Ele é muito mais velho que você, será que você devia realmente casar, agora?”. Flor foi achando Odete cada vez mais intrometida e pediu conselho ao namorado. “Ela tem inveja de você. Imagine, ela com um marido inútil em casa vendo você, jovem e bonita, com um homem como eu. Acho que você deveria se afastar dessa mulher”. Mas Flor sempre confiou em Odete, era difícil desvencilhar. “Eu não vou me intrometer, Flor. Acho que você é madura para as suas escolhas. Mas, aconteça o que acontecer, saiba que estarei aqui”, foram as últimas palavras que Odete disse para Flor, antes do casamento, e antes de ela se afastar definitivamente da amiga de longa data.

A partir de então, Flor só foi olhos, pensamento e dedicação para Armando. As amigas do secundário, deixou para lá, solteironas invejosas do seu casamento. Larissa nem foi à festa, Mariana esteve durante todo o tempo com cara de velório e Juliana nem festejou o buquê. Estava melhor com Armando. Até mesmo sua mãe, que sempre estimou o genro, foi ficando presença mais inconstante na casa da filha. “Ela nunca mais quis se casar, uma desquitada, não é bom exemplo pra você”. E assim, Flor ficou cada vez mais restrita à casa, a Armando, à família de Armando, aos jogos de futebol aos domingos e quartas, aos pratos preferidos do marido…

Alguns dias depois, notou um cheiro diferente na camisa dele. Pensou ser impressão, mas o odor persistia e cada dia mais forte. Um arrepio correu-lhe o corpo. Não podia ser, ele nunca faria isso. Não comentou no jantar, nem nos dias seguintes. Armando passou a chegar mais tarde, até deixou de dormir em casa, um dia, dois, uma semana…não atendia mais aos seus chamados. E ela, sem ter a quem pedir, sem ter a quem recorrer. Sozinha em casa, sem dinheiro. Chamou a polícia, encontraram o marido em outra cidade, morando com uma mulher e os dois filhos deles. Flor murchou. Não sabia o que fazer.

Ligou para a mãe, que tinha viajado, fora da área de cobertura. Ligou para Larissa, mas o telefone não atendia. Ligou para Mariana, que desligou ao ouvir sua voz. Ligou para Juliana, que estava doente e ela não quis incomodar. Aos prantos, olhou pela janela e viu Odete cabisbaixa ao celular. Não pensou duas vezes. Desceu e atravessou a rua. Odete, ao vê-la, esboçou um sorriso, mas logo viu suas lágrimas. Sem perguntar nada, abraçou a moça. Flor percebeu que ela também chorava e se soltou rapidamente do abraço. Olhou Odete com firmeza. Sem perguntar nada, abraçou a amiga novamente.

“Entre, por favor”, disse a cabeleireira com a voz embargada, Flor assentiu. O salão estava vazio, Odete lhe serviu um café e ambas falaram de suas dores. O estado de saúde do seu marido evoluiu para terminal, as constantes ligações eram para o hospital. Nada mais a ser feito e ela tendo horários limitados de visita. Flor escutou sua dor e quase menosprezou a própria lamentação. Da janela, tinha presenciado, sem saber, toda angústia da amiga e não fez nada, centrada em Armando e nas suas coisas. Se sentiu egoísta.

Em uma pausa, a pergunta “E você?”. “Estou bem”, Flor mentiu, disse que estava feliz por reatar a amizade, por estar presente, por poder consolar Odete. Ela sorriu, disse que estava aliviada, sentiu muito a sua falta, mas não queria sobrecarregá-la com seus problemas. Levantou para servir um café, “Quer mais?”, Flor aceitou mais uma xícara. Odete, sem demonstrar muito interesse, perguntou pelo seu marido. Flor não pôde conter-se e desaguou tudo que trazia em seu peito. Com cumplicidade, Odete segurou a sua mão e ofereceu toda ajuda que pudesse. Estava ao seu lado, como sempre esteve, mesmo quando estava longe.

Nos dias seguintes, Odete propôs ensinar tudo que sabia a Flor. Logo, ela iniciou a trabalhar no salão, se tornando uma cabeleireira disputada. Com isso, Odete teve menos trabalho e pôde dedicar-se às visitas no hospital. Choraram juntas, abraçadas quando ela ficou viúva. Sorriram juntas quando Flor ganhou uma bolsa para um curso técnico de Estética. No salão, as conversas das mulheres, que antes achava fúteis, a divertiam. Às vezes, balançava a cabeça, em outras, aconselhava.

Da janela do apartamento, que estava mais alegre, decorado com quadros e flores, comprados com o dinheiro que Flor ganhava no salão, ela ainda espiava o outro lado da rua, enquanto lavava louça. Sempre à espera de um aceno de Odete, caso precisasse dela fora do expediente. E as duas se necessitavam.

autora: Ju Lopse

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Coletivo de Escritoras, reúne mulheres de todo o Brasil, de várias faixas ​etárias e momentos da carreira.