Um pouquinho d’água
por Fernanda Germano (@fernandagermanno)
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Mãe, eu não sei mais o que fazer.
Mas eu te avisei, não avisei, Manu? Eu te avisei! Sabia que ia dar merda…
Eu sei, mãe… Mas a gente só presta atenção no tempo da gente.
O problema, Manu, é que o seu tempo é muito lento, muito lento! Quantas vezes eu te falei ‘Manuela, larga esse moço, Manuela, ele vai te machucar, Manuela, ele vai reduzir sua ilusão a pó’…
Mamãe me falava com águas caudalosas nos olhos.
Havia mentido, um dia, ao dizer-lhe que ia à padaria. Ia, na verdade, encontrá-lo. Às cegas: nunca havíamos nos visto, nem tínhamos pessoas em comum. Na urgência do tempo que eu acreditava me ser já escasso, entrei numa festa suspeita, mas sob a justificativa do viver sem medidas. Encontrei-o, sem achá-lo bonito ou interessante: achei apenas que era o momento. Porém, se nota-se bem, todas as histórias de amor são muito simples: sumira após um tempo. Na hora, é uma dor incabível; depois, romantiza-se para que fique mais fácil lidar com a frustração… Não era a hora certa a pessoa certa o local certo… A verdade, porém, era que era eu que não me via certa.
Nos domingos, ele me prendia pela manhã — bom dia. planos pra hoje? — até não ser mais domingo e ele voltar na quarta, talvez na sexta, com um trecho do livro que estava lendo pela primeira vez e que eu já havia vivido umas três ou quatro vezes. E me prendia de novo. Numa página de livro, numa foto de árvore, num áudio de música. Vivia a me deixar à mercê da vida, enquanto todo o meu viver passava a depender da sua existência.
Bem-vinda… entra.
Entrei. A porta mal abria, tão pequena a casa onde ele morava. Uma cama da infância numa parede, um ventilador na outra, a televisão na última. Um banheiro com toalha pendurada no box lá atrás. Meu livro, que lhe dei de presente, deitado na prateleira, em cima de outros todos caídos e amassados. A garrafa de água no chão, perto do chinelo — ele descalço, à vontade para me prender e soltar quando quisesse.
Quer um pouquinho de água?
Aceitei.
No copo, tinha uma formiga vermelha e gigante, que expulsei assim que ele virou as costas para ligar a tv (ele me dava muito as costas…). Bebi metade da água, sentei na cama. Ele ajustava o filme, que assistia mais pela expectativa do fim do que pelo percurso. Bocejava, exausto da ladainha romântica, enquanto eu acarinhava seus dedos das mãos, estáticos, duros, sem qualquer esboço de companhia. Começara a passar a ponta dos dedos da mão livre pelos meus cabelos. Um carinho seco e frio, brevíssimo. Igualzinho à prisão…
O filme acabou e não foi capaz de conter um suspiro de enorme alívio. Já me pegava na nuca, beijava meus lábios com uma fúria de sede em quem suou muito. Descia pelo pescoço, colo, seios, com a boca sonhava, com as mãos realizava tudo até que… chega!
O que foi, Manu?
Chega!
Manu, que isso, fala baixo! Ninguém pode saber que você tá aqui!
Chega! Chega! Chega!
Manu! Calma! O que foi?
Toda a pouca água que tomei do copo derramava de mim. Levantei, peguei minha bolsa. Saí. Entrei no carro, estacionado bem embaixo da varanda. Fiquei, ainda, por minutos no quente, liguei o rádio, vi que tocava mais uma melodia que ele não conhecia. Não houve olhar de volta. Voltei à casa, à mamãe. Aos prantos, enxuguei-me com a roupa para que ela não me percebesse em tal estado de nudez. Nenhuma mulher pode me ver chorar, eu pensava, porque são todas muito fortes, não podem me achar uma menininha fraca. Abri a porta. Ela me olha, lá do sofá, fazendo crochê. Os olhos, bolas de gude translúcidas que sabem a verdade, contrastavam na inércia se comparados com a ação rápida dos dedos na agulha e na lã. Ela já sabe de tudo… Desabei. Sentei ao lado, disse que eu só queria alguém… não sei mais o que fazer.
Mas eu te avisei, não avisei, Manu? Eu te avisei! Sabia que ia dar merda…
Eu sei, mãe… Mas a gente só presta atenção no tempo da gente.
O problema, Manu, é que o seu tempo é muito lento, muito lento! Quantas vezes eu te falei ‘Manuela, larga esse moço, Manuela, ele vai te machucar, Manuela, ele vai reduzir sua ilusão a pó’…
Deitei no seu ombro pela primeira vez. Senti que voltava ao estado de menina, numa necessidade por amor-carinho que não vinha do masculino. Senti que voltava ao estado de filha, num impulso por devolver-me a mim. Senti que eu precisava ter ido mesmo embora. Com essa dor eu sei lidar… com essa dor da perda. Melhor do que lidar com a dor do ‘se’. E que bom é estar protegida em asas de mãe… por que não vi isso antes? Por que toda vez que uma mulher sofre é que se descobre o amor?
Mamãe, imóvel, deixou-me dormir ali nela mesmo. Dissera, baixinho, que você tem que aprender que não cabe no corpo de qualquer um. Que não basta ganhar um pouquinho d’água num copo… que você merece é o oceano inteiro.