Uma relação delicada

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Coletivo Escreviventes
4 min readFeb 13, 2024

autora: Cidinha Ribeiro

Nós — elas e eu.

As mulheres não me deixaram por aí, sozinha e doida. Elas pontuaram excessos, disseram “por aqui, por ali, cuidado, pense bem, ouça seu coração, ele tem razões que a própria razão desconhece.” Sofro de esquecimentos convenientes.

Sobre dores e delícias antigas, sei contar. Minhas e delas. Porque também segurei suas mãos geladas de medo e arranquei com gestos firmes as vendas usadas com o propósito de enganar e de adiar. E dançamos juntas na chuva, comemos brigadeiro na cama e guardamos nossos segredos para desmistificar mulheridades.

Amélia, minha mãe, me emprestou seus olhos, e com eles eu li. Minha leitura não foi de letras, nem de palavras, nem de textos. Não li o livro das mil e uma noites naqueles olhos tristes. Dentro deles, vi sua angústia de ser infeliz por tantos descaminhos. Ela queria, como queria!, a coragem de tomar outro rumo, começar de novo. Mas eu estava ali.

Fui eu quem roubou seus sonhos mais bonitos, ela me contou. Antes, enrolou as palavras em papel de seda, aquele usado nas pipas feitas para voar. Restaram os pesadelos e alguns descuidados passatempos — cantar e contar, presente e passado espremidos numa pequena troca.

Amélia contava histórias reais. Ela se vangloriava de seus feitos. Ressaltava sua dramaturgia antiga. Falava de um mascate que lhe arrendou o próprio coração, devolvido anos depois, dilacerado e coberto de razões.

Em uma noite, a janela se abriu para minha mãe Amélia. Havia uma grade de ferro isolando o quarto da vastidão. O quarto era pequeno. Cabiam nele a cama de casal, o berço e a cômoda, onde fraldas e roupinhas de bebê formavam uma pilha em tamanho desproporcional ao móvel. Cada vez que uma peça era retirada, o monte crescia em todas as direções.

A vastidão enchia os olhos e vazava, espraiava-se pela noite. A voz da amplitude ondulava feito silvos de ventania: “Venha!”. E havia estrelas mareando desejos sufocados. Minha mãe olhou para cima em meio aos entrelaces. Ela chorava, mas a grade não se moveu porque era de ferro.

As mãos dela tocaram corcovas formadas bem nos locais dos encaixes da grade na parede. “E se eu esgaravatar as corcundas”? Das unhas da minha mãe, gotejavam lágrimas vermelhas. Mas ela continuava seu trabalho de cavar, cavar, até as pontas presas do metal se desprenderem, respingadas de pó.

O estampido assustou a coruja adormecida pela negligência. (Aquele era seu tempo de zaranzar.) E havia sapos dentro da escuridão porque havia também insetos notívagos. A Lua não era nova nem cheia. Ela apenas quarto crescia no canto discreto da prenhez de luz. Minha mãe surgiu no terreiro feito fantasma.

“Quem sou?, ela se perguntou para afastar o tédio de não confiar em si mesma. A janela fechada dizia do sono dela e do meu sono. Dormi segurando sua mão aquela noite. Era doce o cheiro bom da mãe sossegada.

Conheci Ártemis na curva desenhada entre a infância e a juventude, quando eu fantasiava a adulta em mim, com “caras e bocas” diante do espelho. Ártemis era o que eu queria ser quando crescesse: desavergonhada e sarcástica. As freiras escondiam as mãos dentro do hábito religioso para disfarçar o tremor. Crescer não mudou o destino delas.

Ártemis usava saias curtas, e sua blusa do uniforme se distinguia pela brancura diferenciada. Ali também se exibia a essência. As pernas mostradas eram roliças, e as meias de estudante realçaram tamanha beleza.

Minha deusa não se vitimava com a maledicência. “Inveja”, e gargalhava. Eu aplaudia aquele destemor, o pisar sobre plumas. Para meu desagrado, com o olhar zombeteiro, ela me levava de volta às minudências do meu cotidiano.

Amélia tropeçava em mim dentro da casa, mas não me via. Eu sentia alegria com o roçar de sua roupa em meu corpo. Um cheiro bom de maçã saía dela e me envolvia em um duplo de prazer e de encolhimento. Uma lesma na concha, protegida e só.

A escola me tirou da concha. O novo me convidou. Havia duas escadarias para se alcançar o patamar que conduzia à varanda e depois ao interior da casa, onde ficavam as salas de aula.

Dona Antônia, a professora, chegava com os braços ocupados. Ela trazia material de trabalho. Certa vez, trouxe um livro de história, lida em capítulos, diariamente, pausadamente. Talvez quisesse rendilhar a imaginação das meninas mais atentas.

Minha professora leu Ema de Tanneburgo em doses diárias de encantamento. Desde então, sinto arroubos de alegria ao ler histórias e me lembrar dela e de Amélia. Porque foi minha mãe quem me contou que a leitura é sempre um trampolim que nunca nos deixa no chão. Aprendi com ela que mulheres devem construir a liberdade de voar. Anotei palavras-chave da teoria. Ártemis me ensinou a prática.

Amélia sabia muitas coisas, mas havia a grade feita de entrelaces. Dia e noite. Sem perceber as estrelas no alto, ela tropeçava nos sapos cá embaixo.

A diferença entre ser e parecer aprendi com a Suzana. Ela poderia continuar um corpo e um nome estrangeiros, se quisesse uma vida mofada para si, mas não quis. Suzana usou razões secretas do coração, um antigo conhecido, quando decidiu comprar o mais belo e elegante de todos os vestidos de festa.

Choramos abraçadas. Eu, por saber que Amélia sempre teria uma grade de ferro entre a realidade e o vestido de seda namorado na vitrine; Suzana, por ter sido capaz de derrubar a grade para alcançar o seu.

Ártemis, Suzana, Amélia, dona Antônia, com sua vara de condão, Ema de Tanneburgo. E Maria, Vera, Clementina, Raimunda, Ana e Ludmila. Juntas, fomos, somos e seremos todas as mulheres do mundo, como um ramalhete de dores e de delícias pronto para arrumar a casa.

@umasenhoraescritora

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Coletivo de Escritoras, reúne mulheres de todo o Brasil, de várias faixas ​etárias e momentos da carreira.