[o artista emerge das águas da memória: Deusmar.]

ROSA das neves
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8 min readAug 10, 2020

como fica nossa vida no improviso do destino?

Deusmar em sua casa em Aparecida de Goiânia, junto com alguns de seus quadros.

Quando me deu na telha escrever sobre meu pai imaginava estar assumindo curiar a criatividade em ação de um homem comum, pedreiro autônomo há mais de 30 anos que passou a pintar e fazer poemas no alto de seus 30/40 de idade, como qualquer outra pessoa quando dá na veneta de uma “fuga”

“o pior é a rotina que vive
vive solitária com tudo
esperando que a beleza de cada coisa
seja uma imensa viagem”

da rotina de tantos anos moídos, de um vento de finitude ali no horizonte, que se aproxima, ainda não sopra mas faz soar os sinos distantes. Mas qual a origem? De onde surge o artista? Teria sido apenas um atraso no florescimento de uma semente bruta, cascuda pelas condições de sua vida? Sua produção tardia refletida também em seus versos, de maneira a contestar ao mesmo tempo em que registra:

“já se passaram muitos anos
e só agora chega o anúncio do poeta
em seus versos
”.

Desta forma, com essas questões e outras, não demorou para minha curiosidade se transmutar em uma sanha de detetive que me obrigava (sentimento de: se não eu, quem?) ao desafio de desvendá-lo em produção, ou, ao menos, entendê-lo. Para isso fui em busca de reunir a produção visual de meu pai e também recorrer aos seus textos. Então daqui em diante irei mesclar as duas produções para buscar, visando a experiência, a amostragem deste homem chamado Deusmar.

Rotas de fuga para correr de volta

“Sem título” massa corrida e mix de tintas em madeira mdf (fotografia ampliada).

“como fica nossa vida no improviso do destino?”

Deusmar chega a se questionar em um de seus poemas. Nascido em Rondonópolis, Mato Grosso, e batizado com 3 meses de idade já em Santa Helena de Goiás, em Goiás, estado onde viria construir sua vida e fixar suas (dolorosas?) raízes mais tarde. Filho de pescador, aprendeu a nadar cedo. Quando seu pai morreu ele tinha 5 anos e morava com sua mãe numa ilha no Rio dos Bois em Castelândia, Goiás. De onde surgiriam memórias a serem expressas nos seus textos e pinturas: “as ondas que secam sobre as águas/ para surgir um infinito mar de sangue/ durante o pôr do sol”.

Já me imaginei como um homem em fuga, não é uma história incomum, já conheci muitas pessoas que dizem temer seus fantasmas. Mas meu pai parece não querer fugir, pelo contrário, não sei se por um sentimento de derrota ou de coragem, como ele também expressa:

“fantasmas duram séculos no interior de um homem
e agem como lembranças”

não sendo vampiros as pessoas devem lidar com esses fantasmas internos que haverão de viver muitos anos após sua própria morte, algo que parece dizer “ninguém escapa da memória” e diz.

Essas memórias acabam sendo materializadas em tons escuros, carregando certo drama da noção de estar remando à noite e mergulhando nas partes fundas, como um bom filho de pescador, dentro de si mesmo.

“Sem título” tinta asfáltica com corante líquido em tela.

“das tristes recordações
ficaste apenas cores
negras cores
de uma noite tenebrosa”

Os “rios/veias” na pintura ao lado, parecem ditar caminhos que se entrecruzam sem saber ao certo por onde vão sair.

“Sem título” tinta asfáltica com corante líquido em tela (fotografia ampliada).

A crosta criada pela tinta asfáltica dá a sensação de dureza intransponível, como a casca de uma árvore, uma proteção contra o exterior. Ao mesmo tempo os riscos pretos traçam um caminho liso entre essa casca. Como se Deusmar reafirmasse os fantasmas inescapáveis da memória e se reconhecesse como essa pintura: grossa pela vida mas atravessada por muitas trilhas perdidas, muitos rios/memórias, igualmente inescapáveis, frutos de uma sensibilidade adormecida, afogada. Que inevitavelmente sobe à superfície agora.

O “drama” alcançado nas composições é resultado da mescla de identidades de Deusmar, sendo poeta, pintor, pedreiro. Ao ponto em que o pintor lança traços, o pedreiro envolve os métodos a serem utilizados (textura, massa corrida, tinta asfáltica, pinceis, espatulas, restos recolhidos de obra…) e o poeta trilha por entre todos os outros, na aventura, na odisseia do artista que emerge das águas da memória e do sonho.

“Sem título” (fotografia ampliada).

“em vão debruço no tempo
cheio de sono e sonhos”

“um beijo dispensa o despertar, já que vivo em seus sonhos”

Os retratos: olhar e busca.

“Sem título”

Consegui ver meu pai buscando atentamente os rostos. Como se houvesse uma musa perdida, uma sereia que vive naquelas águas das lembranças de infância. As expressões adquiriam cores nostálgicas e às vezes mórbidas, um traço bruto, no sentido antônimo de lapidado. Mas que guardavam, nessa relação que os retratos produzem com “o outro”, joias raras.

“juro que desde que nasceu
tem uma pedra preciosa no seu coração
e não um coração de pedra”

“Lá vai ela”

Os tons ainda escuros permanecem durante quase toda sua obra, exceto em seus últimos quadros (coleção na parte Reunidos: quadros — conferir ao fim). Como se ao mergulhar nessas águas turvas Deusmar encontrasse um feixe de luz que, pasmem, sempre esteve ali. Entrando pela superfície e balançando até o fundo arenoso onde sua criança, impossivelmente, toma fôlego mais uma vez.

“busco no silêncio a palavra certa
e na multidão, você”

E encontra?

Considerações para você, pai

Bom, este ensaio deveria ter saído ontem (09 de agosto, dia dos pais), mas para aproveitar a sua presença acabei adiando, desculpe as partes em que usei palavras que você não tem muita proximidade (como nostalgia), é que não encontrei muitas outras para trazer à tona este teu

“néctar que adoça e nos brinda
a renovar universos e viver outra vez”

O poeta emerge das águas da memória na necessidade de viver mais uma vez, o artista impaciente que não espera pelo amanhã na consciência de que tudo passa

“o ontem se foi
o amanhã cansei de esperar”

e que mesmo assim, na ânsia de viver o presente, busca uma janela para outros caminhos ainda não descobertos. Pai, quem sabe não descobrimos juntos?

“preciso abrir uma janela para o passado ou futuro
pois jamais quero morrer no presente”.

Bom, eu também não.

Para concluir vou deixar essa tela que pintamos juntos, onde coloquei colagens de trechos de um livro antigo e pintei uma espécie de tornado, que mais tarde veio a ser concluído por você, acrescentando mais profundidade e cores rodopiando — que me lembram a vida sendo sugada por esse mistério que nasceu conosco, como peixinhos ou girinos nadando em circulo em torno de um buraco negro.

Te amo, velhinho.

Reunidos: poética.

em vão debruço no tempo
cheio de sono e sonhos
o pior é a rotina que vive
vive solitária com tudo
esperando que a beleza de cada coisa
seja uma imensa viagem
tranquila
nas páginas de um livro, onde tudo se revela
precioso de se ler
em vão tenho medo do nascer do sol
desprezo, ódio, tédio
sinto falta do amor ao dia
não importa o beijo
sei que foi fatal,
calma, um presente, ainda carrego
seu nome
em vão tenho medo da tarde
sei que era de cristal
e se quebrou
o poder das palavras hoje é um concerto
de silencio
que tem a forma das ondas
que secam sobre as águas
para surgir um infinito mar de sangue
durante o pôr do sol.

já não penso, mas sei que foi bom
não sei, mas sinto que ainda vibra
meus restos mortais
agora ficaste apenas cores
amarelo azul verde laranja
pêra e outras frutas
nesta salada de cores.

me despedaço em seu colo
falo em silencio seus segredos
seus problemas
na boca uma voz de sono e desejo
o mundo recomeça
feliz, calado
passou o tempo de aprender
só de pensar sou duro
sou seco, sou doce
amargo
mas no seu colo é permitido sorrir.

sigo adiante, rumo a eternidade
como planta que o sol secou a seiva
no amor busca umidade
e neste mundo encontrar novamente o brilho do teu olhar
não pude ficar contigo
e as magoas que trago comigo me fazem compreender
que seu amor me lapidou
e agora em grotas frias e escuras encontrei o olho d’água
e tudo parece tão cinza
como o azul do infinito
perto do brilho do teu olhar.

um beijo dispensa o despertar, já que vivo em seus sonhos
de melodias, sorrisos e magias

e eu: imperfeito e embriagado, ouço suas palavras e sinto que
é carne falando de amor

desde então, feito louco driblando a má sorte
que insiste em ressurgir na sua ausência que dói forte

sinto saudade dos beijos e do néctar que adoça e nos brinda
a renovar universos e viver outra vez

viver nos seus sonhos, onde o céu é do sol da lua e das estrelas
que agora são saudade da musa que me fez poeta

suas palavras, sua presença amiga prende-me
e me faz feito louco envelhecer

a cada novo amanhecer é como nascer de novo e novamente
viver em teus sonhos repleto de sentimentos

sinto que sou carne falando de amor.

Reunidos: quadros.

“Sem título” massa corrida e mix de tintas em madeira mdf.
“Sem título” massa corrida com corante líquido em tela. — Obs: as cores marrom no centro do quadro se deram através da criação de uma casa de cupim sobre a tela, a qual foi lavada depois adquirindo essa tonalidade.
“Sem título” mix de tintas em tela com acabamento em verniz. — Obs: o reflexo na fotografia se dá devido o verniz aplicado na tela.
“Sem título” mix de tintas em tela (fotografia ampliada).
“Sem título” mix de tintas em tela.
“Sem título” tinta em tela.
“Sem título” tinta de tecido em tela. — Obs: Arte inspirada em quadro da cena de um filme (o nome do filme acabou se perdendo no tempo).
“Lá vai ela” tinta em madeira mdf.
“A bruxa” massa corrida e corante líquido sobre tela (fotografia ampliada).
“A bruxa” massa corrida e corante líquido sobre tela. — Obs: a foto original foi retirada de cabeça pra baixo e para manter a originalidade da obra foi modificada a visualização.
“Sem título” massa corrida em madeira mdf (fotografia ampliada). — Obs: a pintura foi feita com o uso de um talher e pregos de construção.
“Sem título” massa corrida em madeira mdf.
“Sem título” colagem em madeira com remoção do papel em água.
“Sem título” reprodução feita com mix de tintas e textura em molde de papelão. — Obs: livro inspirado na capa do livro “O Diabo” de João Uchôa C. Netto.
“Sem título” os dois quadros foram pintados com textura e tinta de casa em tela. Obs: Os dois quadros fazem parte de uma coleção grandiosa com formatos geométricos mas que não foram inclusos aqui.
“Sem título” textura e tinta de casa em tela (fotografia ampliada).
“Sem título” textura e tinta de casa em tela (fotografia ampliada).
Deusmar com mais outras duas telas não finalizadas.

Fiasco lab. 2020.

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ROSA das neves
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Escritor & tradutor do Coletivo Fiasco e do Laboratório de Fritação Artística Lola. Estudante de Letras Goiano e Santa Rosense, brazuca filho pródigo.