carta-crítica #01: de Marcelo Reis de Mello à Mônica de Aquino e ao Rafael Zacca

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7 min readMay 24, 2018

Sobre o Fundo Falso (Relicário, 2018), uma feijoada em Inhaúma e um texto de J. G. Merquior.

Amiga nova, velho amigo. Segue um desejo de carta.

Escrevo não somente pelo Fundo Falso lançado ainda agora aqui no Rio, nem só pelo nosso encontro recente entre gim tônicas e lições de pagode, mas também por causa de um texto do José Guilherme Merquior que você me anunciou por telefone, Zacca, e que depois digitalizou e mandou por e-mail. Foi tão estranho ouvir você falar do velho Merquior defendendo a Razão da Poesia enquanto eu chegava na feijoada da Dona Leila, mãe do Sérgio, em Inhaúma. Talvez porque ali esta Razão não se criasse. Ou outra razão se abrisse.

Poderíamos imaginar uma poética (não do feijão) da feijoada: aquela deliciosa falta de forma: linguiças, orelhas, pés e rabos e bochechas de porco flutuando na escuridão.

Porque é uma falta de forma que me chama aqui.

Se eu entrasse desatento ou excessivamente atento em Fundo Falso, Mônica, poderia acreditar demais nestes primeiros impulsos da sua Penélope Insone ao querer “Completar a urdidura do dia / saber do manto o desenho exato // saciar toda fome de geometria (…)”. Mas não. Pouco depois nasce desse apetite apolíneo a consciência atormentada do informe, a monstruosidade do tecido no gesto que enlouqueceu, e ela “desfaz a mortalha como se destruísse um véu. / Fere a carne do pano, fere o dedo na pressa / e mancha, com sangue, a colcha de / promessas”.

Não é de hoje que a poesia repõe, sob infinitas roupagens, o gesto aparentemente oximórico da esposa de Ulisses. Tecer, destecer, tecer destecendo. Aqui, no entanto, o que move as suas mãos não é mais a esperança de retorno do herói, um mundo povoado de deuses. É, ao contrário, a consciência da sua falta. Sem herói ou linha possível, tece o próprio corpo: pano encarnado, colcha de promessas: “É a si que Penélope espera”.

Lembro-me de uma imagem do Aracniano de Deligny: a aranha posta num pote de vidro segue ensaiando até a morte o gesto (inútil?) de tecer sua teia. Fio não há. E se houvesse, não haveria mundo. À diferença de que para a poesia não há dentro nem fora. Não há pote. Só há pote.

Não seria este também o fundo falso que dá nome ao livro?

O que ouso defender aqui é que a catástrofe, o fracasso da linguagem — ou seja, o fracasso do nosso projeto de humanidade — é o que (re)constitui o sentido da poesia. É no estilhaçar de toda utopia e de toda Razão que nos serviriam de mapa (nesse mapa acredita ainda J. G. Merquior, em 1962) que a poesia pode finalmente se tornar o que é: um ensaio de gestos aracnianos e falhados. Texto (tecido) que, sob o signo do amor, devém mortalha:

Penélope assustada

O amor é cheio de dedos
o amor é cheio de patas

aranha inexata
espreita o mínimo erro

e espera.

O que teço do amor
é a mortalha.

Este é um dos poemas que mais gosto do seu livro, Mônica. A aranha espreita sempre o mínimo erro, mas esta Penélope assustada não espera uma presa exterior a si. Teia e aranha constituem o mesmo tecido e “é ela quem corre perigo”. Na leitura que arrisco, é disso que se trata.

Diz Barthes n’O Prazer do Texto: “perdido neste tecido nessa textura o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia.”

Quanto ao texto do crítico carioca — Crítica, Razão e Lírica — acho que ele revela, Zacca, muitas cicatrizes de um tempo em que a poesia ainda mantinha o seu quintal cercado. Uma Lírica. E para ser justo, a defesa da inteligência ali não é um simples arroto escolástico — é uma revolta justificável contra a groselha sentimental que vinha e ainda vem banhando a poesia brasileira, herança colonial da “maré choraminguenta do verso lusitano”. Sobre a discussão aberta entre “significado x insignificante”, o partido que ele toma se esclarece ao fim do ensaio, advogando a Poesia Práxis contra a Poesia Concreta. Mário Chamie contra os Campos. E o quanto Merquior erra ao subestimar os efeitos do concretismo (e também do Neoconcretismo) sobre a poesia brasileira, hoje é fácil verificar. O verso não acabou, é certo. Mas ficou falhado. Encalacrou-se.

É claro que eu não tenho a pretensão de liquidar aqui o assunto. Por isso escolhi esta cartinha. Encontrei na leitura simultânea dos livros uma brecha por onde a poesia de 2018 e a crítica de 1962 se examinam um pouco, cheias de olhinhos. Alguns poemas de Fundo Falso ajudam a perceber traços comuns a uma parte significativa da poesia dos últimos anos feita aqui. Por mais que tenham voltado a se alinhar à margem esquerda da página, são poemas autoconscientes do fracasso da teia como monumento. Sabem que toda arquitetura humana é índice da sua barbárie. Ou do seu ridículo.

O que mais me chama a atenção em Fundo Falso é justamente esta aparência de que não há nada por trás de uma superfície significativa. Esta voz baixa e polida que os versos curtos recobram. Mas eles guardam, ao menos nos momentos em que a teia está mais tensa, uma violência desintegradora. Em vez de insinuarem uma forma exata, de tentarem saciar a fome geométrica anunciada no início, veem-se implicados na amorfia da escrita; na falta de forma do seu nascimento:

A cadela engoliu
o filhote natimorto
lambeu o sangue, em silêncio.
Deixou o cenário insuspeito.

Ignore-se este ávido
rito de higiene
e se dirá do animal
que é companheiro, alegre
como qualquer outro cão.

Sem gestos subterrâneos.

Talvez possamos resumir a história da poesia e a nossa história, até certo ponto do mundo, em diferentes batalhas pela forma. O que Merquior defende em seu ensaio é uma forma, uma forma que o homem deve aprender a (e para) dominar. Porque qualquer tentativa de forma é imediatamente uma tentativa de domínio. Ele mesmo diz:

“A importância da razão está, como se disse, no fato de ser por ela e com ela que se faz da poesia, um ato de compreensão do mundo, de domínio do homem, pela incansável fundação de novos significados, e também no fato de ser o elemento de razão o mais completamente comunicável (…)”

Poderia responder com outros fragmentos da feijoada em Inhaúma, com tantos retalhos saborosos de bicho na panela, tantas identidades perturbadas pela força centrífuga de um pagode entre amigos que não éramos nós. Mas respondo com mais alguns versos do seu livro, Mônica: “Depois de ouvir sobre um castelo de cartas / você lambe o branco, / a lógica, a lógica era só um caminho / para o que o absurdo toca / a estratégia final é o corpo / disforme da morsa, a vida disforme da ostra.”

O que conhecemos por “Literatura Moderna” não foi senão uma guerra como
qualquer outra: tentativas de domínio e intimidação, lutas campais por territórios inexplorados, apropriações e declarações de propriedade. Tudo em nome de uma forma, de muitas formas. Mas foi também uma discussão mais descentrada, menor, menos valorizada pela teoria e pela crítica de poesia a respeito do informe. O historiador americano Martin Jay fala disso num capítulo do seu livro Force Fields, que a Celia me emprestou há alguns anos.
Dessas vozes em defesa do informe, Georges Bataille é certamente uma das mais bonitas e indispensáveis. Em seu Dicionário Crítico, o verbete sobre o informe é, apesar de ser um dos menores, um dos que eu mais gosto:

“(…) Seria necessário, de fato — para que os acadêmicos ficassem felizes — que o universo tomasse forma. Toda a filosofia não tem outro objeto: trata de colocar um traje no que existe, um traje matemático. Por outro lado, afirmar que o universo não se parece com nada e que é apenas informe significa que o universo é algo como uma aranha ou um escarro.”

Não é uma beleza?

Outro dia estávamos na UERJ falando dos seus poemas, Zacca, lendo seus livros, comentando a sua obsessão por bichos e os bichos também da Aninha, do Heyk, os bichos da poesia, isso que parece estar cada vez mais em voga, uma “zoopoética”. Lembrei do seu poema sobre a Tênia, que discutimos e que eu amo: “amor é uma Tênia alojada no sistema nervoso central” e também do poema da barata no cemitério de Inhaúma que você fez pro Heyk. Relendo agora vejo o quanto eles reivindicam, esses bichos todos, a dissolução das formas, algo a ver com tudo que eu disse no mestrado sobre delicadeza e trapaça, sua perversidade: “a delicadeza / é uma terra arrasada / tática dos russos / a delicadeza / é um desespero de guerra” e depois

a barata, Heyk,
eu não sei se ficou viva
se tentou ainda as carnes
da dona Elizabete
ou se recebeu
multa de condomínio

morria sozinha
a delicadeza
era manca
um desespero de guerra
crescendo entre as patinhas
só o mel vazando

A delicadeza talvez seja assim como uma tentativa demente de resistir a assumir uma única forma, uma única forma de pensar, uma única forma de pensarmo-nos no mundo, a poesia talvez seja o que sobra, a espera que nos tece, desespero de guerra, o que nos escorrega entre as patinhas, poesia vem a ser, Mônica, algo como a Delicadeza e

A DELICADEZA é uma aranha branca.

Cuidadosamente envolve sua presa
dá certa moldura de beleza à morte.

Cada inseto que esbarra na quase
transparência, para

sem entender o obstáculo

os fios que se sobrepõem

talvez veja o convite da geometria
enquanto vira outra coisa, alimento
para a aranha que fia o silêncio.

É frágil, a Delicadeza, e extrema.

Mora num canto de armário, sob a cama
disfarça-se em vida secreta

é teia, trama geométrica
tentativa de organizar a falta

de comer tudo que esbarra em si.

Com carinho,
Marcelo Reis de Mello
Rio de Janeiro, Maio de 2018.

Marcelo Reis de Mello é poeta, tradutor e sócio-fundador da Editora Cozinha Experimental. Orientador de Oficinas de Literatura na UERJ e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense.

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na bicicleta, no carrinho de rolimã, nas ideias, uma revista digital, um selo de poesia, uma editora, um coletivo levando desconhecidos a pegar carona