carta-crítica #02: de Rafael Zacca a Marcelo Reis de Mello

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5 min readJun 8, 2018

Marcelo,
como me alegrei com sua carta. Você é um enxadrista escrevendo.

E se você é um enxadrista, o argumento da guerra é a rainha da sua carta. Porque que termo designa melhor a batalha das formas do que a guerra em um século de vanguardas? E se o argumento da guerra é a rainha, um outro, mais sutil, são as suas torres: o do informe, da batalha contemporânea pelo informe.

Com tudo o que foi dito, eu só tenho a aprender. Apenas um pequeno detalhe para derrubar uma de suas torres, antes que seus cavalos peguem de surpresa o rei (os seus cavalos são a delicadeza, claro). Apenas uma palavrinha sobre a razão de Merquior. Porque a razão de Merquior é a Razão ingênua do Iluminismo. A que quer recalcar todo o impulso violento que na sua delicadeza se resguarda. Todo o desejo pelo informe. Mas essa não é a única razão. A razão não precisa ser um projeto pelo domínio. Ela se fixou definitivamente nessa forma com o Discurso do Método. E se instalou cruelmente na crítica e na poesia. No Brasil, a cadeira dessa universidade era de Merquior. Agora é de Cícero. Como antídoto, sigo com Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento e por isso não posso ir a fundo com Bataille. Perco o rei, eu sei, nessa luta vã contra uma torre. E, veja bem, é um rei sozinho, um pouco triste, porque não está com Merquior, nem Cícero.

Trago isso porque foi o que me levou a escrever sobre o livro da Mônica. Lá eu contava essa revolta de Adorno e Horkheimer contra o Esclarecimento. Resumia da seguinte forma:

“Odisseu é o herói astuto (o herói da métys), que não lida com as ameaças usando a sua força, mas a sua inteligência… a não ser, é claro, quando retorna à casa e humilha, massacra, tortura e mata não apenas os pretendentes de Penélope, mas também aqueles que os ajudaram, aí inclusa a sua criadagem, como as mulheres que penderam enforcadas no palácio. Adorno e Horkheimer elegeram o herói como a figura pré-histórica do burguês, que recalca toda a sua violência para instrumentalizar o mundo e dobrá-lo à força da razão, e que tem como cobrança o retorno do reprimido em forma de ondas massivas de destruição. Assim contam a história do Esclarecimento (da Aufklärung), que teria no nazismo não o seu ponto de desvio e regressão, mas a sua culminância. A série de recalques de Odisseu servem-lhe como reforço da identidade. O que é bastante claro no episódio em que, para escapar dos ciclopes, Odisseu disfarça-se cegando Polifemo e chamando a si próprio de “ninguém”. O que seria, a princípio, uma prática de desidentificação, retorna como método egóico, que reforça o eu, quando Odisseu grita, enquanto escapa em sua embarcação, para que os ciclopes não se esqueçam de que quem os venceu não foi “ninguém”, mas Odisseu. A razão instrumental, em outras palavras, é um pano de fundo sólido o suficiente para sustentar uma imagem nítida do herói.”

Como resposta a essa história da Razão, que Merquior, em 62, tinha muito pouco direito em defender, argumentei que:

“Muito mais turvas são as imagens de Fundo falso. A estratégia é quase contrária: afirmar uma identidade muito forte para, não com um pano de fundo, mas com um fundo falso, realizar uma desidentificação. O seu método não é o recalque, mas a ostentação da dor. Seu prêmio não é a razão instrumental e o retorno à casa, mas a faculdade da imaginação e a multiplicação do lar. O resultado não é a permanência do ser, mas a transitividade.” E ainda que: “Dedos que se transformam em patas e, por fim, como que num passe de mágica, em aranha monstruosa, ou melhor, inexata, da qual não sabemos nada, apenas que mistura cuidado (dedos) e descuidado (patas que podem dar patadas) na sua desmedida antinatural. As vogais fechadas de “dedos” e as abertas de “patas” se combinam no vocábulo crescente “inexata”, levando a desproporção à escala micrológica das sílabas. Em outras palavras, o poema realiza a monstruosidade e a desproporção a partir de uma delicada arquitetura vocal. Forma e tema tensionam-se entre a delicadeza e a rigidez — mas o que promove essa tensão? O cuidado se transforma em agressividade (dedos em patas), que, por sua vez, se transforma em bicho capaz de ardil e espera (aranha): o que tensiona delicadeza e rigidez é a faculdade da imaginação, quer dizer, a capacidade de por as imagens em movimento.”

Ao final da resenha, que vai parar logo mais no Suplemento Literário de Belo Horizonte, é o seu nome que também aparece, veja você:

“É este talvez o preço da faculdade da imaginação hipertrofiada: a assunção de toda a dor. Isso liga Mônica de Aquino a alguns nomes contemporâneos: desde o Fábio Weintraub de Baque e Treme ainda até a Laura Erber de A retornada. Este talvez seja um dos eixos de suas coordenadas. Mas também em poéticas da delicadeza e da destruição, como as de Mariana Ianelli (em O amor e depois), Leila Danziger (em Três ensaios de fala) e Marcelo Reis de Mello (em Elefantes dentro de um sussurro) encontramos o segundo eixo. Com bastante equilíbrio, a poeta se sustenta com Homero em uma mão e o cajado humilde do real na outra. Uma das raras figuras equilibristas no cenário contemporâneo.”

Mas como gosto do fracasso. É isso também que gosto no Elefantes (quantos bichos!) e é por isso que fico contente em você ver isso nos bichinhos que botei no mundo. Hoje eu estava assistindo a Gilmore Girls. Foi um episódio sobre fracasso. Mãe e filha choravam a beça, Marcelo, no final do episódio. Uma desesperada na faculdade; a outra, com o emprego. Sigo desesperado nos dois. Sem muita esperança de dias melhores. Chorei à beça hoje. Mas muito amoroso por poder chegar a casa e encontrar mais uma coisa bonita que um amigo tão delicado pôs no mundo. Essa partida de xadrez que você, Marcelo, vem jogando. Um xadrez todo acidentado. O meu rei caiu. Acho que o seu também. E você é um ótimo enxadrista. Estamos salvos hoje porque ninguém venceu. Ninguém precisa vencer, dominar, nem nada disso, e você e todos os seus movimentos falam, esquerdamente, com direito.

Amor,
Zacca.

Rafael Zacca é poeta e crítico literário. Doutorando em Filosofia pela PUC-RJ, integra o Grupo de Pesquisa em Arte, Autonomia e Política (PUC-Rio). Articula com outros poetas a Oficina Experimental de Poesia (OEP). Colabora como crítico com o Jornal Rascunho e com a revista Escamandro. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

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na bicicleta, no carrinho de rolimã, nas ideias, uma revista digital, um selo de poesia, uma editora, um coletivo levando desconhecidos a pegar carona