carta-crítica #03: de Estela Rosa para Danielle Magalhães.
Danielle,
hoje andava a 50km/h de carro em uma das principais avenidas do Rio porque esse é o único caminho que me leva para fora dessa cidade, e há uma bifurcação justamente onde volto para minha cidade e onde vou para a outra cidade que espelha a minha. Estava eu sim na Linha Vermelha altura da Washington Luiz BR-040 próximo ao Mengão Fogos com escudo do Botafogo, ainda antes de descer a rampa que me faz rir dessa combinação inusitada de paixões. Essa bifurcação mengão e fogão, o escudo do botafogo, o nome do flamengo e eu ali entre a estrada que me leva a Miguel Pereira e a que me leva para Petrópolis.
Estava ali naquela bifurcação te ouvindo recitar seu poema e na hora em que você dizia exatamente a frase, juro, exatamente esta frase: quando dizem que a espera é feminina, desde o início o homem conquista e a mulher espera, um cone no meio da pista um carro no meio da pista um pouco mais à direita e nós, eu carona, na espera bem feminina de ser passageira como quase sempre fui em toda minha vida. Quem dirige é quem não espera, é quem escolhe se avança ou não o sinal. Passageira ali com essa frase em direção a mim, aparecendo na frente como o cone, no susto, todo o tempo o susto que levo lendo você ouvindo você e o susto do cone e de repente um estouro um impacto, o rádio voou longe minha cabeça também, mas você continuou falando. Olho para o lado e vejo um olhar desesperado naquele que não esperava que nunca espera ser atingido, eu sim ali na espera feminina esperava como sempre espero em algum momento ser atingida em cheio no meu lugar de passageira. Ele não.
Um outro carro chocou infinitamente a traseira do carro onde estávamos e meu cérebro parecia fora do lugar a nuca ainda não doía mas a cabeça chacoalhada me fez pensar que agora preciso mais do que nunca conquistar em vez de esperar eu digo fica aqui eu vou ali vou ali resolver porque a espera é feminina mas os nós são desatados por mãos delicadamente brutas e de unhas longas.
Naquele momento lembrei imediatamente que quando somos crianças temos o que chamamos de moleira para que o cérebro da criança possa crescer expandindo também a caixa craniana. Uma criança nasce com os olhos do tamanho que terão os olhos ao morrer, mas o cérebro não, ele cresce e se expande e quando morremos ele pode estar ainda menor. Naquele momento lembrei que os cérebros na caixa craniana funcionam como funcionam as largas pistas de autoestradas com dilatadores, é preciso calcular a dilatação do asfalto, computar isso na hora de construir uma estrada, algumas faixas de ferro fazem a contenção do asfalto que dilata e então pensei que temos uma fina camada de algum líquido que eu não lembraria o nome na hora do choque, ainda bem, ainda bem que esse líquido fica femininamente na espera pelo choque, por uma cabeça que bate e volta.
Como num teste de acidente, imagino meu corpo preso pelo cinto minha cabeça indo e voltando os olhos captando flashes o cérebro chacoalhado porém intacto exatamente como quando ouvia seu poema, Dani, na hora do acidente, segundos antes do choque.
Danielle Magalhães acaba de lançar o livro Quando o céu cair (7Letras, 2018).