carta-crítica #04: Júlia Manacorda para Julia Raiz

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8 min readJul 11, 2018

Manacorda escreve para Raiz após a leitura do livro Diário: a mulher e o cavalo.

Oi, Julia

lhe escrevo porque Sté — a Stephanie Borges — me emprestou o seu Diário: a mulher e o cavalo — o seu livro de estreia — e há muito tempo não lia um livro de poesia que eu quisesse ficar e retornar a ele — mentira, recentemente li a Bernadette Mayer, mas falo de gente como a gente. E, sinceramente, sempre me pego pensando sobre o que é isso de lançar um livro para o futuro; qual o sentido se o retorno, na maioria das vezes, é mudo. Por isso me esforço para lhe escrever algo.

A vontade de lhe escrever surgiu, logo, no começo quando li 2 por 5.

preciso te contar que também vivo um ciclo obsessivo
[nota1: porque Diário: a mulher e o cavalo trata-se de uma obsessão] — na verdade, dois — com W. G. Sebald, gosto de pensar que ele educou o meu olhar — e o segundo, é com a imagem náutica / portuária / industrial do Rio de janeiro /i.e navios cargueiros, galpões e plataformas de petróleo.

Então, queria te contar das imagens que me pesaram. Quando li que você sempre pensa nos cavalos mortos, nos seus olhos fixos onde pousam as moscas. Olhos de longos e grandes cílios de dar inveja

Pensei na imagem do cavalo morto de Peter Bauza

a imagem do cavalo morto diante do carro abandonado e dilapidado, o anúncio das peças à venda

não é possível notar seus olhos e muito menos o tamanho dos cílios

quando vi pela primeira vez a fotografia de Bauza tinha acabado de sair de uma exposição de arte contemporânea de conterrâneos, lá na caixa cultural, pela qual passei ignorando. Quando cheguei ao Bauza, pensei: dels como ainda sou moderna
- abandonada e molhada
com essa intuição especial
que o leva a notar

digo isso porque

2

Cavalos & guerras me lembram o verso do O’Hara
- e eles inventaram o século com seus cavalos — no Naphta
ele falava dos iroqueses, mas o mesmo pode ser dito dos belgas,
[franceses, alemães (?)
do século XIX, do XVIII — todos que os antecederam — e até do XX
e fora do calendário gregoriano, algo sobre mongóis e sobre a Bielorrússia
[ como
Svetlana disse — a Svetlana citada por você.
o que me leva a pensar no Ocean Vuong dizendo:
but, more importantly, the female gaze is also the gaze of the witness.
e aquela coisa
se testemunhamos é porque sobrevivemos.

2.1 e

então Sebald — minha obsessão, lembra — nos Anéis de Saturno
- também uma espécie de diário — em sua suspensão habitual, diz
“nós, os sobreviventes, vemos tudo de cima para baixo, vemos tudo de uma só vez e ainda assim não sabemos como foi. O campo arrasado estende-se ao redor, onde certo dia cinquenta mil soldados e dez mil cavalos morreram no intervalo de poucas horas.”

e se pergunta o “que terá sido feito de todos os corpos e dos restos mortais?”

se “Estão enterrados sob o obelisco do monumento? Estamos de pé sobre uma montanha de mortos?”

se, a cidade, enfim, ergueu-se aí. O fim da expansão napoleônica, a vitória da restauração sobre 10 mil cavalos mortos.

isso tudo porque você diz “No livro da Svetlana, sobre a guerra mundial, encontrei passagens preciosas”

3 como,
“no livro da autora da Bielorrússia, os cavalos se acostumam a pisar nos mortos”
como se numa inversão, mas ao mesmo tempo não

os cavalos
a profecia para tudo & a fundação de toda catástrofe

o Congo Belga e a mãos defumadas do Congo Belga
a Bielorrússia durante a guerra a Bielorrússia depois
da guerra

4
e estas imagens fantasmas

A fantasmagoria

Os cavalos de Sofia Borges

5 –

Só queria concordar que “filmes de guerra são sobre homens que voltam para casa no final de contas, é muito entediante.”

II — quatro páginas no meu rascunho do word e só falei das coisas que me remeteram a

chato isso, sei. sempre me incomoda quando falar de poesia se torna contar anedotas

mas é que pensei em escrever um diário de leitura, e acaba que as coisas ficam assim

também penso que se eu ousar em dizer algo quanto à forma
seria fútil, afinal, você, das letras
eu, da história
realmente, o que nos resta é o conteúdo que os homens até
ontem nos ditaram

mas quando leio seu diário não datado me lembro — mais uma vez, essa categoria -
do teatro épico de Brecht
i.e polemizar com as unidades de ação, do tempo e do espaço e do drama

sabe a boa distância
aquilo que permite o paradoxo de uma forma
que, ao mesmo tempo, que é capaz de suspender o tempo ao dizer
- e permitir dizer — esse “diário é só meu”
escancara a história que a atravessa
“fotografados nos mais covardes confrontos entre a polícia montada e as pessoas gritando”

o eu atravessado, colapsado

:

em decadência e ressurgindo

a indeterminação dos blocos de prosa
e a força de sua pisada — a cada verso, um deslocamento, uma outra coisa
algo que não te deixa estacionar, a impossibilidade do messianismo
um anticlímax capaz de prometer conselhos
mas jamais uma revelação

“Pensava que amar um homem era como colocar a mão na boca de um cachorro enquanto ele come, mas talvez seja montar um cavalo que sente estar perto casa. Um homem gordo em cima de um cavalo, tão gordo a ponto de um cavalo encostar a barriga no chão e dobrar os joelhos”

e isso porque diante da indeterminação é possível tanger, de alguma forma, uma experiência que seja

“os cavalos sorriem? As mulheres o tempo todo.”
uma experiência

e de novo, a escolha pelos blocos

Quando você diz: “A menina que eu encontrei na lanchonete falou que as mulheres têm que fazer que nem os cavalos na umbanda: transmitir. Eu não entendi. Mas eu sei que as mulheres estão todas
interligadas, nossas mentes formando uma grande rede. Por exemplo, eu escutei a palavra “acre” numa peça, e no mesmo dia, uma poeta escreveu “acre” num poema que eu li esses depois.”

penso nos blocos de Ana C, a mesma indeterminação em conluio com uma precisão cirúrgica só possível diante do humor; aquele rearranjo irônico
talvez, um jogo como o do “esconde e revela”; o velho “achou / cadê? / achou”
um jogo de indeterminação. como sempre me repito muito, mas é a que a indeterminação
concede potência a todas coisas; a partir dela, entre o prosaico, o político e poético não se fala mais em limites.

“Esqueço de pedir permissão para Socorro e o monto feito amazona que sou de outros tempos, cavalgo a história como se cavalga um homem, de pernas abertas, fingindo que crianças desconhecem o sentido do vai e vem que deu origem à humanidade. Dei voltas à toa sem saber voltar para casa, porque
esse livro é todo impossível perdi a capacidade de traçar caminhos”

penso também na Rosmarie Waldrop
“A ausência de sentido quebra o espelho”
e em Carson, óbvio
a Carson em sua epígrafe alertando
“Não há tratamento para miopatia por captura”

antes eu pensava que fui capturada por sua obsessão
as imagens de cavalos não cessam de saltar
mas me esqueci de dizer
digo agora aqui

III — agora que escrevi essas coisas
não só acho fútil como penso que as anedotas conferem ou
melhor reafirmam que a vida
passou por aqui — e também, Sté me disse que tu estuda a Carson
por que falo então de Brecht? inútil

um dia me disseram que a comédia põe a salvação na mesa
e eu levei isso muito a sério

e foram tantas as vezes que ri aqui

“O Stein Bernau é um menino transexual de 14 anos, viciado em cocaína que adora a banda Wild Nothing. O Adam Charney é um homem cis de 43 anos que acabou de conhecer Wild Nothing e já A-M-A ELES.”

Lá no Anunciação
lembro da vez que meu primo veio do mar me trazendo
um cavalo marinho e eu corri
porque
nojento

Não é o aparador da sala, e nem é um cavalo, mas na minha estante tem um burrico de alabastro

“No aparador da sala, todo mundo tem, pelo menos, um cavalo em miniatura ou um galo, um gafanhoto, um touro, um gato, um elefante, uma mulher. O meu cavalo é um de Troia, posto na estante, um majestoso cavalo de madeira reduzido a 15 centímetros de cerâmica.”

Não sei explicar por que amei tanto o Prisco — percebe-se como agora já escrevo como se estivesse mandando mensagens pelo telegram — talvez a mulher com boné e moletom adidas indo comemorar o centenário da revolução russa

Gosto de como as coisas deslizam
entre os blocos

5.1 de novo, só queria concordar

“não há nada de mais em ser um homem entediado, o cinema está cheio deles, recitando Rimbaud de cabeça”

A gente desliza porque é assim que dá para fazer entre escombros

“uma criança sempre encena a existência de uma outra criança tal qual ela não é”

Bem, aqui no meu rascunho já é a página 7

Tudo já é muito mais que ridículo

como o vitral torto do banheiro da minha vizinha

Mas olha o teu vitral: “todas as notas que tomamos e as pausas e Lila e Lenu tentando ver o mar”
dizendo

“que as mulheres precisam vibrar e o sopro”

Posso dizer
- eu que evito tais palavras -
sei lá, não sei o que dizer, na verdade. olhei a páginas muitas vezes. foi o que mais me fixou
li em voz alta outras tantas vezes
é isso que acontece quando ficamos comovidos

“(Lê outro poema, desta vez sobre coisas maiores e coisas menores, ênfase no verso a good fighting horse)”

Foram 5 as xícaras de café que tomei enquanto te escrevia

pensei em deletar tudo e te mandar só a parte I

perdoa o excesso e a falta de sentido

são só mesmo 20 poemas?

bacio,
Júlia

ps: foram 7 páginas e mal falei do que há de mulher / ou do que são as mulheres em seu livro, e devo, mais uma vez, lembrar o título, diário: a mulher e o cavalo. Graças a deus, Sté existe no mundo para me lembrar das mulheres em seus livros, especificamente, para me lembrar que “como os cavalos, as mulheres surgem nesse livro não só como espólio de guerra, mas como força de trabalho: a moça da lanchonete, a da sapataria, a senhorinha que comemora a revolução, a própria narradora dos poemas que trabalha, cozinha, pega ônibus e cheira à funcionária” (Borges, Sté. em email) Nisso me lembrei da menção à Lila nos vitrais — Lila que assumiu todos os estereótipos possíveis de uma mulher trabalhadora do neorrealismo italiano: a sapateira, operária de fábrica –, e como ela é um retorno às lojas de sapato do 2 por 5 em que “as funcionárias precisam usar maquiagem e salto alto”. E ainda é no 2 por 5 que você diz: “Desde que comecei a trabalhar no centro, não tentam mais me vender coisas, eu cheiro a funcionária como elas”. Mas acima de tudo, Sté me relembra, como Svetlana também o faz, que mulheres enquanto força de trabalho são também esforço de guerra.

sobre a autora

Júlia Manacorda 1991, Niterói. King Krule > Mac Demarco. Flat white, mas, às vezes, coado.

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na bicicleta, no carrinho de rolimã, nas ideias, uma revista digital, um selo de poesia, uma editora, um coletivo levando desconhecidos a pegar carona