Carta-crítica #05: Marília Floôr Kosby para Linn da Quebrada

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coletivo garupa
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4 min readJul 18, 2018

Querida Linn, Lina

venho despertando de sonos injustos, sonos aqueles, que nascem na gente. Conceição Evaristo andou por aqui. Maio. Andou por aqui, levantando legiões por onde passava. Esteve em Porto Alegre, levantou legiões negras, acordou a “cena literária e cultural da cidade”. Lotou a ufrgs a pucrs os teatros as casas de show os bares, lotou às levas. De artistas negras e negros, intelectuais, estudantes, famílias negras. Conceição Evaristo andou por aqui e nunca mais vai ir embora.

Tu sabes disso, eu sei, andaste por aqui também, às levas. Delongo porque outras pessoas lerão esta carta, além, talvez até antes, de ti. Conceição Evaristo foi a escritora homenageada da festipoa literária deste ano. Foi na programação da festipoa que nos encontramos. Na noite de seis de maio. Clarissa Ferreira e eu apresentamos a performance poesia xucra, um pouco antes de tu começares tua conversa sobre arte trans, com a cantora Valéria.

Eu não te conhecia. E saí daquela noite com a sensação de que tinha parado para ouvir uma fala muito antiga, uma conversa de coisas muito antigas. Porque vivas. Vivas há muito tempo e a despeito dos massacres consentidos por cada época. Vivas em algum território impreciso, movente. Coisas tão antigas, e que quando ditas — quando ouvidas — parece que atualizam nosso código genético. Eu sei lá eu o que é código genético! Queria te dizer ancestral, coisas ancestrais, mas me deu medo. Estou tentando achar um nome para te dizer de algo ali nas raízes dos pelos do meu corpo. Todas elas, mas só aquelas que calafriam. Coisas antigas e com força de inéditas. Será a violência, ela, a de sempre, macha e vil? Será por compartilharmos o anseio de uma condição humana menos domada, menos dócil, uma língua selvagem?

Há dois ou três meses, eu vinha realizando alguns encontros de prática e discussão em torno do fazer acontecer poesia. Junto com mais oito artistas, que toparam minha proposta, fizemos uma vivência, que chamei de buscando a letra xucra: iniciação em poesia desgarrada, semanalmente, na livraria baleia, aqui em porto. Pela degeneração das linhagens, o abastardamento das genealogias, por uma poesia em constante desgarrar, pouco preocupada em buscar um pai para o que parimos, ou uma matriarca que o valha (“fazendo filhos iguais, assim como seus pais”, nas tuas palavras).

Estávamos praticamente todas, lá no bar agulha, na noite do dia seis de junho, quando tu chegaste quebrando a costela de adão (“… sou a nova Eva / Filha das travas e obra das trevas”). Pedias menos amor e mais respeito. Pois, como dizes, Deus é uma palavra linda, uma palavra composta de muitos eus. Dizias — te cito de memória — algo como: “não quero ser um ícone, um modelo”, “não façam igual ao que eu faço, façam outra coisa”, “não sei se eu sou cantora, mas eu canto, faço música pra ser ouvida, não pra ser cantora”. E ainda: “eu não chego a ser homem, nem chego a ser mulher, eu sou a falha, e a assunção dessa falha, como processo, é o que chamo de bixa travesty”. Te questionavas com ironia: foste sub-humana (bixa, preta), agora és pós-humana (trans), quando serás humana? Os direitos ainda são Direitos Humanos. Dos Animais.

Com a poesia, sonho eu também a sedução de me pertencer numa grei de ajenas. Em Mugido, o livro que apresentei na noite em que nos encontramos, busquei uma ascendência em línguas radicalmente alheias, as das vacas. Eu não quero descender com conforto de um espectro tão restrito de humanidade. Para isso, às vezes, aciono, como tu falas “uma crueldade necessária para mudar coisas em mim”.

Não sei se te lembras, sou uma mulher branca, gosto de marcar essa particularidade, antes que qualquer vício me conceba papagaia de uma voz universal. Uma mulher branca, cis, dissidente do padrão heteronormativo de vida, e muito diferente de ti, se formos falar em termos de “identidade”. Não acredito que uma identidade em comum seja a única via de empatia entre as existências. Sigo as pistas das raízes dos pelos do meu corpo. Elas são altamente políticas, como é sempre prudente dizer. Percebem um movimento que nos escapa da racionalidade cartesiana. Na tua presença, um trânsito constante, trans, capaz de transformar em força criativa aquilo que em nós — seres vivas — seria presa de capturas civilizatórias, adestramentos aniquiladores.

Quando a Amanda Cinelli, uma das editoras do coletivo garupa, que editou o Mugido, me pediu para escrever uma carta a um(a) artista brasileira(o), eu quis seguir conversa contigo. Pelo que vi ganhar peso, matéria, a partir da noite do dia seis de junho. Transar com a diferença, negociar com ela, é uma arte arriscada. E nossos corpos suportam intensidades diferentes. Me moveu endereçar essa carta a ti um certo fascínio pelo fracasso dos ídolos, dos ícones-grandes-paus-eretos. Acho que já te agradeci. Desejo que mais artistas ericem seus mantos coragem com a presença da tua arte. Para experimentar linhagens impuras — tem que ter muito, mas muito, mas muito, mas muito, muito talento.

Marília Floôr Kosby é poeta, compositora e antropóloga. Publicou Mugido (Garupa, 2017), Os baobás do fim do mundo (Après Coup, 2015) e Nós cultuamos todas as doçuras (Prêmio Açorianos de Literatura 2016), dentre outros.

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na bicicleta, no carrinho de rolimã, nas ideias, uma revista digital, um selo de poesia, uma editora, um coletivo levando desconhecidos a pegar carona