Carta-crítica #06: Stephanie Borges para J Lo Borges

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7 min readOct 4, 2018

Sobre família, arte, corpos e Visibilidade Lésbica.

Irmããã,

Tenho pensado muito no corpo e o poema, e não deixa de ser curioso escrever sobre isso para você. É engraçado como nós, geradas a partir dos mesmos corpos, acabemos, por caminhos diferentes, explorando possibilidades de um tema em comum. Mas não, não surpreende.

Parando para olhar as fotos da sua última série Transar-te me lembrei daquela sua tatuagem subvertendo o sacramento da transubstanciação: este é o meu corpo. Há quanto tempo esse assunto nos ronda, antes que termos noção de que, querendo ou não, nossos corpos estão imersos em significados, disputas?

#artesapatão na Ferro’s. foto: Bléia Campos

Gosto especialmente dessa fase mais recente do seu trabalho pelas aberturas trazidas pela cor e pelo movimento. Durante a exposição Político/Pessoal, era engraçado ver as pessoas se aproximarem dos quadros, e de repente, as reações quando elas se davam conta do que estavam vendo, ou ainda, quando elas liam o texto na lateral das telas em busca de uma pista.

Nos últimos meses, nesse processo de traduzir os ensaios da Audre Lorde, muitas vezes me deparei com reflexões dela sobre se autodefinir.

A cultura ocidental, o patriarcado já estabeleceram uma série de estereótipos em torno dos corpos que desviam de suas normas, nos cabe então, dizermos quem somos com as nossas palavras.

E isso não é simples, porque contamos com essa linguagem cheia de vícios, esvaziamentos que favorecem a ordem estabelecida. Encontrar nossas palavras, talvez implique em agir nas brechas, nas ambiguidades, e assim, criar uma espécie de confusão.

Então, quando encontro as suas imagens de um corpo lésbico escapando dos discursos recorrentes da pornografia e/ou da violência, do jargão militante, penso que não é apenas o caso de recusar o que é imposto. Porque não é suficiente. Declarar “minha sexualidade não é um fetiche” ainda implica lembrar desse lugar onde tentaram confina-la. Ainda é usar as palavras dos outros. No entanto, quando você imprime sua boceta contra a tela, cheia de cores e texturas, evocando as muitas possibilidades desse sexo que molha, escorre, se move, se expande, temos aí um outro caminho.

J Lo e uma foto da série Transar-te

Não sei, nem acho que seja meu papel especular que caminho é esse. Mas sinto um certo alívio de te ver explorar além de pintar vulvas, não só porque temos Georgia O’ Keeffe e Suzanna Scott, mas porque me assombra essa dinâmica da parte pelo todo.

Reduzir uma mulher aos pedaços de seu corpo também é uma tática.

Ao mesmo tempo em que sei que cabe às mulheres ressignificar o que são, também me pergunto até que ponto a insistência boceta não acaba recaindo numa celebração de uma ideia de feminilidade, nas associações fáceis à parto, maternidade, fertilidade. E não é que essas leituras não caibam, mas me angustia como as coisas podem ser lidas pelo lado mais fácil, ignorando os significados em disputa. Quando você coloca mais pele, traz a lembrança de que a mulher é mais que soma de suas zonas/partes.

Recentemente, quando Janelle Monáe lançou o clipe Pink aquilo me trouxe uma luz, porque era enfim, uma mulher falando de sua boceta sem mistificações. Era divertido, uma mulher negra se apossando de seu corpo e, ao mesmo tempo, definindo que ele não está à venda. Um jogo cheio de camadas, texturas, diálogos com a arte, a música, videoclipes feitos antes.

E no entanto, quando parte da recepção deste clipe na internet ignorou (por ignorância ou por heteronormatividade?) o conteúdo claramente lésbico das imagens de Janelle e Tessa Thompson, isso me fez pensar na sua Coletiva Visibilidade Lésbica, e em como não entendi, da primeira vez que você me explicou sobre o conceito da invisibilidade, porque esse é um dos nomes que damos a essas coisas externas que nos são impostas. E no entanto, depois que você me deu esse nome “visibilidade”, só então entendi como o apagamento acontece. Lembrei também de quando você me disse que um dos teus trechos favoritos de Um útero é do tamanho de um punho, estava n’O livro rosa do coração dos trouxas:

“eu tive uma namorada
com super poderes
de invisibilidade
e quando andava com ela
também era invisível

mas quando ela usava
uma blusa transparente
virava a incrível
mulher-teta

eu continuava
sob o guarda-chuva
de superpoderes
superinvisível”

Recentemente, me peguei explicando a homens hétero o que era a visibilidade, porque eles não precisam nomear isso, afinal se veem o tempo inteiro, em todo lugar. Epistemicídio mandou lembranças.

O Dirty Computer, o emotion picture da Janelle Monáe, me fez pensar na importância de pesquisar o Afrofuturismo a sério. Tinha ouvido falar do termo/estética desde 2015, quando aconteceu a Mostra Afrofuturismo em São Paulo, mas desde então só mantive aquele flerte distante. Até que o álbum visual da Janelle me atingiu, porque materializou essa minha angústia em relação a necessidade de visões diferentes: mulheres negras sendo lindas, se divertindo, amando quem quiserem, ao mesmo tempo em que são críticas e resistem.

Foi então que resolvi voltar ao Kindred: Laços de Sangue, da Octavia Butler. Eu tinha tentando ler esse livro em 2016, e estava com a edição brasileira aqui há meses, mas enrolando, porque travei da primeira vez na cena em que a Dana, vista por um capataz, é confundida com a mãe da Alice, e é atacada. Aquele momento, em que a individualidade é apagada, em que qualquer mulher negra é passível de abuso apenas por ser o que é, me doeu e larguei o livro. Mas agora tinha visto a ficção científica trabalhar para os outsiders, ouvi Janelle Monáe transformar suas origens humildes em um diferencial, uma força, uma estética, era a hora de chegar na fonte e ler a Butler.

Junto com o Kindred, fui lendo o Afrofuturism da Ytasha Womack, em que ela fala de várias possibilidades de releituras das experiências das pessoas negras num universo especulativo. A retomada das mitologias Iorubá e Egípcia, o retorno às culturas africanas associada ao pensamento decolonial especulando como viveriam as pessoas negras sem a experiência do racismo, como em Wakanda. Mas o que mais me espantou foi quando ela fala do rapto dos corpos negros na África pelo tráfico escravagista e a metáfora da abdução alienígena. O corpo sequestrado para servir em outro lugar, o que me fez pensar também no Corra! do Jordan Peele, em que o sequestro não acontece de um jeito tão óbvio, como a Dana perdendo o controle no eixo tempo/espaço, mas a partir da autonomia de pensamento. E a Dana, que se achava tão consciente porque livre, tantas vezes se colocou em risco por não se acreditar tão exposta e vulnerável quanto as outras mulheres do século XIX. A falta de visão também é um risco.

Em Entre o mundo e eu, uma carta de Ta Nehisi-Coates para seu filho adolescente, ele comenta as várias formas como uma pessoa negra pode perder seu corpo: para violência racista, o encarceramento em massa, a truculência policial, o apagamento. E traduzindo a Lorde, quando ela diz que o Black is beautiful é um começo, mas não o suficiente, isso faz muito sentido, porque embora precisemos reconhecer a beleza, também é necessário determinar os espaços da inteligência, da criatividade, da provocação.

Uma poeta que me abriu caminhos, a Nikki Giovanni, disse numa entrevista recente que nada se compara a uma mulher negra, porque mesmo levadas de seus lares a um lugar estranho, elas contavam histórias, inventaram uma culinária, criaram canções, fundando uma cultura. É esse tipo de percepção — fora do lugar subalterno e da posição de token — que me interessa, e é uma posição difícil, que exige vigilância e questionamento constantes. Outra poeta que traduzi, a Claudia Rankine, escreve sobre como a linguagem racista impacta o corpo negro. Seu livro, Citizen, é ilustrado por várias obras de arte, uma delas da série Soundsuits, do Nick Cave, me fez pensar nessa declaração da Giovanni, nas canções do Dirty Computer.

A minha dúvida não é mais quanto a relevância do que foi criado a partir dos corpos e mentes negras, mas sobre como fazer com que com essas imagens e discursos cheguem às pessoas que precisam fazer essa arqueologia.

Escavar as camadas de apagamento até encontrar quem conte histórias que dialoguem com as suas vidas. Penso em como nós, que crescemos com um exemplo impressionante em casa, mas não tínhamos imagens e referências em quantidade do lado de fora, fizemos longos percursos para encontrar a arte, a teoria, a literatura que se aproximem das nossas experiências. É claro, que nesse esforço, existe um aprendizado, mas há também o desgaste. Mas considero uma vantagem entendermos que muitas coisas não nos serão dadas. Questionar, se apropriar, experimentar se tornam essa prática frequente. Não é um elogio da dificuldade, mas entender como ela afia as nossas percepções.

Então, quando você transa com a tela, e traz o prazer, o gozo, uma série de cores vivas, o corpo que não se pauta pela reprodução para a disputa do que significa ser mulher, ser negra, ser lésbica, quantas significados se tornam possíveis?

Talvez ainda não tenhamos como saber. Mas vai ser bom ver você explorar.

Com amor, da maninha,
Sté

Stephanie Borges escreveu essa carta em julho, de 2018. É poeta, tradutora, jornalista e irmã de J Lo Borges. Escreve sobre livros, filmes, séries e cultura pop na newsletter: tinyletter.com/stephieborges

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na bicicleta, no carrinho de rolimã, nas ideias, uma revista digital, um selo de poesia, uma editora, um coletivo levando desconhecidos a pegar carona