A borboleta de muitos olhos na madrugada cega

João Reis III
Coletivo Metanoia

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O homem assistiu a todos os noticiários da TV e percebeu que, diante daquelas informações, diante desse mundo em caos, ele tinha que fazer algo para ajudar a melhorá-lo. Por isso achou ótima ideia oferecer a maior suíte do seu hotel para os primeiros clientes que aparecessem, ao preço de um quarto comum. Não que não fosse apegado ao dinheiro, afinal ele quer reformar seu imóvel.

Saindo da cidade próxima dali, e com seus conflitos pesando a vida, um casal parecia acuado, em especial a mulher, Li, que estava assustada. Ela pensou: só um louco ficaria na cidade, após presenciar uma tentativa de assassinato.

A noite já tinha estrelas, lua e frio. A estrada estava vazia, longa, silenciosa. O cãozinho no banco traseiro, ora choramingando, ora em sobressaltos. Anderson e Li, dificilmente estavam pensando a mesma coisa, quase hipnotizados pelo cansaço. Ele imaginava como a reconciliação entre os dois poderia de fato se concretizar, afinal voltaram a namorar ontem, e hoje já estão mudando de cidade. Ela pensava no crime que quase a vitimou, no risco que correu e em como se proteger daqui para frente.

Planaltina estava a 38 quilômetros, lá no alto, aparentando ser inalcançável. Quando as luzes da cidade apareceram no horizonte, um relâmpago foi antecipado pela reação do cachorro. Anderson quase fez o carro se apagar naquela escuridão.

- Você poderia acelerar um pouco, querido?

A escuridão fez com que a grandiosidade do espaço vazio escondesse um vulto que os seguia, sobrevoando lentamente o carro.

Chegaram. O centro antigo da cidade destacava um hotel cercado por ciprestes secos.

- Ainda bem que tem chovido, senão essas árvores poderiam se incendiar e acabar com esse hotel.

Pararam o carro diante do portão que estava iluminado por uma lâmpada, frágil como uma vela afetada pela brisa incômoda. Ambos desceram do carro, porque Li temia ficar sozinha. Estranhamente o cão dormia e não se moveu com o barulho das portas. Quando voltaram para o carro, a luz se apagou e o portão começou a abrir vagarosa e pesadamente. Uma expectativa silenciosa fez o som ambiente se tornar mais forte e assumir um espaço que agora se agigantou. Ninguém apareceu, até que o farol do carro incomodou o homem do hotel, que falou com voz frágil e educada:

- Entrem.

O terreno que cercava o hotel era vazio e mal iluminado. Galhos e folhas ressequidas dos ciprestes estalaram com a passagem do carro. Quando pararam, o cão acordou e preferiu não sair. Enquanto isso, o homem voltava para a recepção.

- Precisamos mudar o nome dessa cachorrinha, Li.

Li não comentou essa proposta, inconveniente para o momento, mas que aliviava um pouco o mal-estar de ambos.

Sem cumprimentar os hóspedes, o homem instruiu o casal para preencherem um pequeno formulário. Os animais também precisam de ajuda, ele pensou. Não quis separar o casal daquele bichinho, que percebeu estar muito assustado. Uma ideia antiga que viu na TV contra o antropocentrismo lhe ocorreu: o hotel não é antropocêntrico, permite a entrada de animais. Lembrou cuidadosamente a si mesmo: com a condição de que fiquem no banheiro.

- Nosso estabelecimento não é antropocêntrico. O cachorro poderá ficar, todavia apenas no banheiro.

Anderson, com certa apreensão, escreveu rapidamente seu primeiro nome.

- Sol, o nome da cadela poderia ser Sol.

Li, incomodada ao entender o mal-estar do namorado, pegou logo as chaves do recepcionista e percebeu que faltavam três unhas nos seus dedos da mão direita. Assustada, levou a cadela ao colo e puxou uma alça da mesma mochila que o seu namorado trazia. Insistiu para subirem rápido. Aquela palavra sofisticada — antropocêntrico — vindo de um atendente lhe assustou: talvez ele não valorizasse o ser humano. Não quis imaginar o tipo de animal que o homem criava.

O quarto era enorme, uma pequena janela com abertura para a cerca de ciprestes, um armário, uma cama de casal e o banheiro com a porta em frente ao pé da cama. Após fecharem a tranca, Li colocou a cadela no banheiro, onde havia um tapete e jornais que espalhou no chão em silêncio.

A música de um rádio distante parou de tocar.

Quando Li fechou a porta do banheiro, Anderson se assustou e pediu para entrar. Nua, evitou olhar nos olhos do namorado, incomodada pelo frio, por uma injustificada sensação de estar sob o olhar de estranhos, e porque a cadela voltou a dormir.

- Vou fazer uma tatuagem, Anderson. Uma borboleta.

Ele estava desatento, mantendo na memória a música daquele rádio, feliz por estar em situação tão íntima com ela, após uns dias de tensão. Procurou um perfume ou a loção pós-barba. Imaginou que a noite poderia ser romântica.

- O nome dela pode ser Sol sim, gostei.

Quando ele saiu do banheiro para pegar uma camisa na mochila, a porta rangeu e isso produziu um eco, fazendo o quarto parecer maior. Ele se sentou na cama, escolheu a roupa, mas voltou a escutar o som distante do rádio. Quando se recostou no travesseiro, adormeceu. Li, ao sair do banheiro, cobriu o namorado, fechou a janela e se deitou, após desligar o abajur.

De madrugada, sem entender onde estava e o que ocorria, Anderson acordou e se assustou com a presença da namorada. Uma fresta deixou a luz da lua entrar no ambiente. Viu então a beleza dos pés dela. O esmalte que sabia que era róseo, a pele que sabia que sempre era macia…

O rádio tocava a mesma canção interrompida por ruídos incômodos, parecendo o arranhar de unhas contra a madeira. Nesse momento ele viu que uma sombra da parede, no formato de uma pequena borboleta, aumentou de tamanho e se moveu, como se estivesse escorrendo até o chão. O namorado se virou para o lado, na crença de que fosse uma ilusão de ótica. A sombra aumentou, se moveu e encontrou a beirada da cama, enquanto o raspar na madeira se uniu a um uivo e ao chiado do rádio. Uma porta se abriu com força, a cadela deu um salto e mordeu o pé da sua namorada, já atingido pela sombra. Sangue jorrou na cama, diante do grito apavorado dele. Mas a namorada acordou, perguntou o que houve, sem que ele respondesse. Percebeu que a madrugada o cegou ou o fez delirar. A cadela Sol ainda estava no banheiro e dormia.

Os gritos e a conversa chamaram atenção do homem da recepção, que bateu à porta, com força e insistência. Então a cadela latiu, rosnou intensamente, saiu do banheiro e avançou em direção à fechadura. Anderson se apressou para abri-la atordoado e ficou paralisado com o que viu. O cão foi suspenso no ar, grunhindo. Seu pelo estava escuro no dorso, tingido por uma sombra. Li gritou o nome da cadela, que voou com umas asas de borboleta, que não estava mais na parede. O homem então arrombou a porta, com uma faca em punho e perseguiu o cachorro até a janela.

- Eu falei para deixarem o cachorro no banheiro! Eu falei para deixarem o cachorro no banheiro!

O casal correu para a saída, enquanto o homem abriu a janela, desferindo golpes fortes com a faca.

Conseguiram entrar no carro, enquanto o cão voltou ao seu estado normal e os acompanhou. Rápidos, eles jogaram o veículo contra o portão, sem verem que estava aberto. Seguiram pela caminho que os trouxe.

A estrada continuava escura, a madrugada parecia lhes cegar, embora estivessem aliviados. Entretanto, a cadela continuava assustada, olhando várias vezes para a lua que tendia a desaparecer e a reaparecer. Talvez não fosse uma nuvem sobre o carro.

Diante de um dilema para onde ir, Anderson seguiu a primeira placa de saída da rodovia. Ele não conseguia raciocinar. Ao tentarem sintonizar o rádio do carro para gerar um clima de renovação, se lembraram de que seria melhor não ter música naquele momento.

Na outra ponta da estrada, o homem chegou a algumas conclusões ao ligar a TV. Novos hóspedes poderiam precisar mais dele do que os antigos, por isso não era mais necessário proteger aqueles, afinal nem disseram seus nomes, nem agradeceram por a cadela ter sobrevivido. Sendo assim, a borboleta abandonou o carro que acompanhava e voltou para o hotel. O homem desligou a TV, ligou o rádio e fez um bule de café, porque a madrugada ainda estava fria e escura.

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