A Janela

Rene Spoladore
Coletivo Metanoia
Published in
3 min readJan 8, 2021
Foto por Kaitlyn Jade

Tudo o que eu me lembro daquele lugar era da pessoa parada do outro lado da janela.

De início eu não havia reparado nela. Parada olhando para mim, estática e com um sorriso largo no rosto. Os dentes enfileirados como lápides de marfim e os olhos me desafiando, me incitando a enlouquecer.

A noite era o momento mais difícil. Eu me deitava, trazendo o cobertor até meu queixo e evitava olhar para aquela janela, mas o reflexo prateado parecia me hipnotizar, levando meus olhos a fitar o vidro com a moldura de madeira escura. Por mais que eu lutasse, a tentação de espiar aquela pessoa que me observava era grande.

Quando nossos olhos se encontravam era como se eu pudesse ver dentro de mim mesma. Uma versão minha que não parecia ter medo. Uma versão minha que me causava medo. Foram alguns dias sem conseguir dormir pensando no que aquela pessoa poderia fazer. Ela não fez nada.

Aquele quarto não parecia ruim de dia, mas ainda assim havia a janela. Minha memória pode tentar me enganar, mas não me lembrava daquela janela no dia em que cheguei aqui. Então ela surgiu ali, um dia. Desde aquele dia eu olhava através da janela e via aquela mulher de cabelos longos e ondulados, pele pálida e sempre com aquele sorriso no rosto. Ela nunca falava e parecia não se mover. Após a primeira semana, sentindo-me confinada no meu próprio quarto, tomei fôlego e parei em frente a janela. Ela não poderia ser aberta, não havia trinco ou maçaneta. Apenas o vidro e a madeira que o contornava. Eu tremia, sentia o suor descer pelas costas e brotar da minha tez. O sangue parecia congelado nas minhas veias. Minha boca trêmula conseguiu se abrir, mas as palavras não tinham força para vir. Eu tinha a voz pastosa e doía tirar qualquer murmúrio do meu peito. Não percebi quando as lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto, mas acho que a pessoa do outro lado percebeu.

- Quem é você? — consegui dizer depois de muito tempo.

Ela permaneceu quieta.

- Por que você me observa todos os dias?

Ela permaneceu quieta, então se aproximou e tocou o vidro com a palma da mão, deixando uma marca úmida na superfície clara. Não havia percebido, mas eu também havia colocado minha mão junto a dela. Palma com palma. Olho no olho. Ela sorria. Eu chorava.

Não.

Nós sorríamos e chorávamos juntas.

Eu vi um universo paralelo em seus olhos e ela deve ter visto o mesmo nos meus. Nós duas, ligadas por alguma força, como duas estrelas que dividem uma mesma luz. Ali eu enxerguei a verdade. A verdade por trás daquela janela. Meus medos esvaindo e dando lugar à realidade que me cercava. Aquelas paredes brancas, macias como um travesseiro me abraçavam, mas abraçavam meus medos junto. A outra pessoa apenas observando o que eu não queria ver.

Não é tão simples ser louco. As pessoas precisam se convencer de sua loucura e ainda assim fazem graça dela. Uma vez me disseram que não se deve debochar da loucura de um louco, pois, diferente da loucura das pessoas normais, ela dura para sempre. A outra pessoa (meu reflexo) parecia saber disso. Talvez por isso sorria para mim e talvez seja por isso que eu chorei por ela. Éramos as duas partes de um todo. Me sentir dividida era horrível e amedrontador e mesmo assim eu olhava para a janela (espelho) todos os dias.

Tudo o que eu me lembro daquele lugar era da pessoa parada do outro lado da janela.

--

--