A mãe e a formiga

Suzane Morais
Coletivo Metanoia
Published in
3 min readDec 1, 2020

Era um típico fim de tarde de quinta-feira. De manhã, arrumar a casa. Ao meio-dia, fazer comida. De tarde, levar o filho para a escola. Limpar os quartos. E, na volta do colégio, passar alguns minutos na praça. Mas esse era o momento preferido do dia de Fernanda, quando, recostada no banco, ficava contemplando a paisagem, sem nenhuma pretensão de ser, somente existir. Com a cabeça inclinada sobre um braço, observava as crianças brincando no parquinho. Elas, com aprovação recém-adquirida, entupiam-se de liberdade, devorando o sossego das casas.

As mães, no banco à esquerda, conversavam sobre qualquer assunto inútil, totalmente esquecidas dos seus rebentos, enquanto um cachorro, à direita, espreguiçava o seu tédio, deitado sobre um jornal velho. O ar tinha um perfume gostoso de pão fresco, porque o dono da padaria da esquina sincronizava o final da fornada com a hora da saída das crianças. O jardim era o que havia de mais especial no lugar. Em arbustos vibrantes, de muitos tons de verde, as folhas gemiam no farfalhar de uma brisa e até se podia adivinhar uma abelha dormindo no seio de uma flor. À tardinha, o vento lambia os cabelos das árvores que se agitavam de modo suave, liberando o aroma terroso de madeira antiga. O sol, já quase desvanecendo, cobria a praça de um vermelho maduro, feito cacho de jamelão pronto para cair do pé.

De longe, espiava o seu menino sentado na areia, junto ao balanço. Lucas era alto, forte e sadio. Tinha sete anos completos e um abraço morno de maio. Quando jovem, Fernanda sonhava em cursar jornalismo, mas desistiu quando conheceu Luís. Em seguida, veio o casamento como uma decisão natural. Ao menos, foi assim que ela foi instruída pela mãe: ser a mulher de um homem. Não bastava ser a mulher, apenas. Inebriada com alguma lembrança, mal percebeu quando passou, por entre os seus dedos, uma formiga. Era robusta, pequena e tinha olhos intensos. O corpo amarronzado e as patinhas finas deixavam em evidência a cabeça grande e inquieta. Ao percebê-la, Fernanda deu um pulo sentada, o que fez com que ela quase caísse. Carregava nas mandíbulas uma enorme folha com o dobro do seu tamanho, talvez para alimentar o formigueiro. As antenas moviam-se indiscretas e o ventre protuberante não podia negar: estava grávida.

Fernanda arredondou as mãos e fez com que a pequena entrasse no meio. Era uma mulherzinha subitamente quente entre os seus dedos. Por um instante, olhou para os lados como quem acha algo muito raro, precioso, e não quer que ninguém note. Analisou um pouco mais de perto. Sim, era uma formiga-mãe, rainha do lar. Acaso o formigueiro sabia que ela estava fora, desprotegida, carregando, no ventre, o ovo? O ovo era o coração da colônia, o motivo oculto de tudo. De certo, a formiga fugiu, escapou, liberta. Aconteceu que, de repente, ela olhou bem na direção dos olhos de Fernanda, encarando a humana. Duas mães e o absurdo do mundo. Depois, Fernanda colocou a formiga no chão para que ela continuasse a sua jornada, não queria atrapalhar. Ela poderia agora migrar, ser, enfim, o que quisesse. Poderia ser apenas um inseto livre, andando por aí, e não um ser-fêmea-fértil.

Antes, porém, que pudesse começar a caminhar, Lucas veio e pisou na pequena formiga. A mulher perdeu a visão. O horizonte ficou fora de foco. A amiga esfacelada com seus ovos à mostra, para qualquer um ver. Mas o filho não reparou no que fez. Quem pararia para pensar nessa simples e minúscula mãe? Fernanda voltou a si. A penumbra cobria o parque no entre-cinza da tarde quase noite. As árvores, antes vistosas e festivas, agora exibiam o riso cínico de suas folhagens. As rosas, enrodilhadas em botão, pareciam pequenos cérebros apodrecidos. As mães foram saindo uma a uma, libertando a praça da alegria furiosa das crianças. Restou o silêncio. O filho de Fernanda, cada vez mais impaciente, exigiu: “Quero ir embora! ” Fernanda meditou o severo ímpeto de amar e se despediu sem olhar para trás.

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