A mansão dos Knowlan

Suzane Morais
Coletivo Metanoia
Published in
9 min readDec 29, 2020

Luana é uma mulher como poucas, fez questão de dizer Serafim, quando se encontrou com os amigos no bar. Ele, para se vangloriar, descrevia a esposa: alta, loira, cabelos esvoaçantes, perfil de modelo, enfim tudo o que ele sempre sonhou. Os colegas confirmavam, dando tapinhas nas costas uns dos outros, gritando às gargalhadas: Esse tipo é difícil de ter! Esse tipo é difícil de ter! Por dentro, questionavam como um homem feito Serafim — baixinho, barrigudo e careca — havia conquistado aquele troféu. Deve ter dinheiro escondido, pensavam, porque, apesar de advogado, levava uma vida absolutamente modesta: casa simples, um carro e conta poupança, como todo mundo. Ferviam, então, de curiosidade, sem demonstrar a preocupação irônica de que Luana devia ter algum problema de tão perfeita.

Era verão. Fazia muito calor, o que deixava Paulo extremamente desconfortável, mas ele, psicólogo formado, estava decidido em fazer dessa experiência um estudo da psique humana. Sentado à esquerda, disfarçadamente cerrou os olhos, fazendo uma leitura corporal de Serafim. Pensou em colocar à prova o seu diploma recém-adquirido. Examinou o compadre dos pés à cabeça: vestia uma sandália aberta que mal cabia nos pés, deixando os dedos para fora, que mais pareciam salsichinhas. Riu da piada interna, levando as mãos à cabeça para alisar o topete do cabelo, simetricamente penteado para o lado.

Tomou um gole de cerveja e deitou os olhos sobre os braços do amigo, pensando em como eram, de fato, peludos. Grandes tufos de cabelo encaracolado pulavam da camiseta branca que sufocava o peito exausto, deixando entrever as axilas, um pouco suadas. Pensou, por um momento, se era assim pelo corpo inteiro. A ideia de pelos pelo corpo lhe fazia embrulhar o estômago. Tremia de asco só de imaginar, por isso raspava-se constantemente como uma obsessão, hábito que adquiriu ao competir como nadador na faculdade e que permaneceu com ele. Ao menos era isso o que dizia às pessoas, principalmente às mulheres com quem saía, ao estranharem o seu corpo nu, inteiramente sem pelos, como o de um bebê.

Paulo e Serafim eram amigos de infância, quase irmãos. Eram tão próximos que um completava a frase do outro na adolescência. Jogavam videogame juntos, faziam natação, dividiam até namoradas no ensino médio. Mas, depois, acabaram se distanciando por conta da vida adulta. Serafim decidiu seguir a carreira da família e foi fazer direito, ocupando, aos poucos, a chefia do escritório do pai. Já Paulo, que sempre foi bom em esportes, foi fazer educação física, abrindo uma pequena academia, algum tempo depois de formado. Durante a faculdade, perderam completamente o contato. Há alguns meses, uma cliente da academia de Paulo entrou com um processo na justiça por lesão na coluna, alegando que foi má orientação dele na condução da rotina de exercícios, já que ele era o seu personal trainer. Quando Paulo teve que procurar um advogado, acabou reencontrando Serafim por um acaso do destino. Paulo mal conseguia acreditar que estava diante do seu brother de colégio: Porra, Serafim, é você? Como tá diferente, cara! É tu, sim, que vai me ajudar a sair dessa enrascada!

E ali estava ele, no bar, totalmente deslocado, sem conhecer ninguém. Aceitou o convite só por educação e interesse em agilizar o seu processo, contando os minutos no relógio para ir embora. Pensou numa desculpa boa, como Então, vou ter que ir, acordo cedo pra ir trabalhar! Essa nunca falhava e, afinal, era domingo, uma solução plausível. Já ia se levantando, quando Serafim disse: Meu amigo, vamos lá em casa, quero te apresentar a patroa! Paulo pensou em responder imediatamente um Poxa, não vai dar, deixa pra próxima…, mas hesitou. Já estava consumido pela curiosidade de saber quem era a tal Luana, de quem todo mundo falava. Achava impressionante a história e se remoía para saber mais, sem saber bem o porquê. Enfim, decidiu por aceitar. Afinal que mal havia nisso, pensou. E, assim, foram os dois para a casa de Serafim.

Andaram vários quilômetros de carro. Paulo já estava ansioso, pois não havia perguntado o endereço e já estavam quase saindo da cidade.

— Falta muito pra chegar, Serafim?

— Não, já estamos quase lá!

— Pensei que você morasse no Centro…

— Ah sim, mas, como estamos de férias, ficamos na casa de verão dos pais de Luana, perto da praia. Você vai gostar. Chegamos! Bem-vindo à mansão dos Knowlan!

Era uma casa realmente deslumbrante. Ficava, como prometido, aos pés do mar. Paulo estava estarrecido com a beleza do lugar: a mansão de dois andares tinha um quintal coberto de árvores e arbustos no estilo art noveau, com um lindo cercado branco, formando uma paisagem idílica. Assim que entraram na casa, Paulo ficou ainda mais maravilhado com a decoração impecável das paredes da casa, repleta de obras de arte. Uma escada colossal dividia os andares enquanto um lustre de cristal encabeçava a abóbada da sala.

— Impressionante, né?

— Serafim, eu acho que nunca vi uma casa tão bonita!

— Espere até ver a minha mulher! Além de linda, é uma escultora de mão cheia.

Paulo parou para prestar atenção nas estátuas. Eram perfeitas. De tamanho natural, elas estavam espalhadas por todo o salão magnífico da entrada principal e tinham uma expressão tão humana que o desconcertaram.

— Elas são feitas com a areia da praia, a partir de uma técnica especial desenvolvida por Luana para moldar e aquecer o barro — disse Serafim, tocando a cabeça de uma das peças.

— O que vocês estão falando de mim, hein? — disse Luana, descendo as escadas.

Ao se virar, Paulo deu de cara com uma mulher que mais parecia a representação de uma deusa grega, uma verdadeira escultura de Afrodite: a pele alvíssima contrastava com o vestido de seda azul jogado sobre o corpo, revelando as curvas simétricas e o físico esculpido de uma Amazona, cujos cabelos loiros e longos brilhavam tanto que pareciam irradiar luz própria ao contornar a face levemente corada de uma Madona italiana. Paulo estava sem palavras.

— Oi, querida. Esse aqui é o Paulo, um amigo de infância. Você se lembra?

— E como poderia esquecer? Você já falou tanto dele. Vocês foram próximos na adolescência, né? Gostaria de ouvir mais histórias.

— Sim, fomos mesmo — balbuciou Paulo, disfarçando o seu olhar que passeava pela figura de Luana.

— Mas venha e sente aqui, pode ficar à vontade. Vou buscar alguma coisa para beber — disse Luana, apontando para o longo sofá-chaise de veludo verde-musgo no outro cômodo da casa.

— Nossa, a casa é mesmo linda, Serafim. Ela é antiga?

— Ah sim, essa casa data do século XIX e é herança de família da Luana, que faz parte de uma longa linhagem de origem celta, os Knowlan. Dizem que eles eram uma família próspera da parte oriental da Inglaterra. Vieram para o Brasil já em decadência, mas conseguiram transformar essa casa num refúgio artístico, de muito bom gosto.

— Engraçado… Nunca tinha ouvido falar deles antes. Já está ficando tarde. Acho melhor voltar para casa — disse Paulo, olhando para o relógio.

— Mas você acabou de chegar, nem conseguiu provar o bolo de chocolate da Luana. E, além disso, a previsão é de chuva. Você pode dormir aqui hoje e eu te levo amanhã de manhã cedo para casa. Temos muitos quartos de hóspedes vazios. Você pode escolher — disse Serafim, com um sorriso amigável.

Como que por mágica, começaram a estalar, do lado de fora, terríveis trovoadas, seguidas de grossas pancadas de chuva, exalando um cheiro delicioso de terra molhada e maresia da praia, misturada com o vento ameno que soprava do mar.

— Olha aí! Não disse que ia chover? Eu sei, porque o meu joelho dói sempre antes de chover. Parece que avisa.

— Que incrível! — disse Paulo desviando os olhos para os joelhos de Serafim que estavam incrivelmente vermelhos. Não havia reparado neles até então. Já ia perguntar a respeito, quando Luana chegou com uma travessa em cada uma das mãos.

— Nossa! Que banquete! Amo bolo de chocolate! Como você sabia que eu gostava de uísque? — disse Paulo satisfeito, pegando uma grossa fatia da mesinha de centro.

— Ah eu tenho faro para essas coisas! Tento adivinhar do que as pessoas gostam!

— Com esse tratamento, eu não vou embora nunca mais daqui — disse Paulo rindo, enquanto dava uma grande mordida no bolo.

— Essa é a intenção — falou Luana com uma entonação sutil que fez Paulo quase engasgar.

Ficaram os três assim, conversando e rindo, durante longas horas. Quem olhasse, de fora, diria que se tratavam de velhos amigos tal era a intimidade com que trocavam olhares e até confidências. Quando o ponteiro do relógio de madeira alemã da sala bateu meia-noite, Paulo, já completamente bêbado e sonolento, se recostou no sofá, quase dormindo.

— Pessoal, vamos então dormir, né? Já estamos exaustos — disse Serafim, convidando Paulo para subir as escadas.

— Então, Paulo, vou te mostrar um pouquinho da casa. Nesse corredor, à esquerda, estão os quartos de hóspedes e, à direita, na terceira porta, é o nosso quarto. Onde você gostaria de dormir?

— Posso ficar nesse? — apontou Paulo para uma grande porta de mogno vermelho.

— Excelente escolha! Você tem bom gosto — disse Luana, dirigindo-se para o quarto do casal.

— Ah o banheiro fica no final do corredor. Cuidado para não errar e entrar na porta que dá para o porão, ao lado. Boa noite!

— Boa noite! — disse Paulo, andando a passos cambaleantes até o quarto.

Abriu a porta e se deparou com um belíssimo cômodo, elegantemente decorado, mas não teve muito tempo para reparar nos detalhes. Caiu na cama e a última coisa em que pensou foi em como era macia.

Acordou com os estampidos de chuva no vidro da janela. Abriu os olhos e verificou no relógio que eram três horas da madrugada. Decidiu ir ao banheiro, afinal havia bebido bastante e a bexiga estava cheia. Levantou e caminhou até o corredor. Ele parecia inteiramente modificado. O branco vivo das paredes deu lugar a um cinza fúnebre recortado pela sombra dos galhos das árvores que atravessavam as janelas, como braços apodrecidos. Os quadros que enfeitavam as paredes mostravam faces derretidas, cujos olhos o seguiam com uma expressão de escárnio e lamento. O barulho da chuva era quase ensurdecedor só vencido pelo assobio tenebroso do vento, que, enlouquecido, parecia executar uma dança macabra pelo lugar. Paulo teve um calafrio. Correu pelo saguão até o banheiro, mas parou de repente sem entrar. Olhou para o lado e percebeu que havia luz por debaixo da porta que levava ao porão.

Quis abrir a porta, mas hesitou por um instante. Ensaiou entrar no banheiro, mas voltou e penetrou o porão. Desceu os degraus numa espiral, percorrendo a penumbra até encontrar a luz. O que Paulo descobriu o fez tremer os ossos. Luana estava em pé, inteiramente nua, sobre um pequeno pedestal e Serafim, de joelhos, raspava um sangue intenso que escorria de sua pele.

— Venha, se aproxime, estávamos te esperando — disse Luana, calmamente.

Paulo, sem compreender, obedeceu, sem forças para fazer qualquer outro movimento contrário. Olhou ao redor e viu um altar com uma foto sua e várias velas vermelhas, mas antes de conseguir fazer qualquer pergunta, foi interrompido por Luana.

— Você é o escolhido, Paulo. Hoje consumamos a oferenda à deusa da fertilidade para o solstício de verão.

Sem conseguir esboçar qualquer palavra, Paulo, como um sonâmbulo, andou em sua direção, hipnotizado pelo seu olhar. Luana, com um gesto repentino, empurrou Paulo para uma mesa, que parecia cirúrgica, em um dos cantos do porão, entoando um cântico numa língua antiga. Serafim permaneceu ajoelhado, absorto numa expressão plena de êxtase. De repente, as estátuas da sala começaram a surgir no cômodo, transformadas em humanos. Riam e dançavam embalados por uma música que um deles tocava numa harpa e outro numa flauta, cantando a mesma letra inalcançável que Luana recitava. Entravam um a um e a cumprimentavam com reverência. Depois, se aproximaram de Paulo e retiraram as suas roupas. O toque frio dos convivas em sua pele o fazia crepitar num frenesi de exaltação. Ele não conseguia se mexer, apenas observava tudo mudo de contemplação, arrebatado.

Carregaram, então, Paulo para o quintal. A paisagem amena de antes havia se tornado outra. O jardim parecia preenchido de criaturas da noite. A chuva tinha cessado, mas outros barulhos insuspeitos da mata preenchiam o ambiente. Colocaram Paulo sobre ramos de trevo vermelho e o canto da música ancestral aumentava num sentido crescente, quando de repente silenciaram. Luana surgiu resplandecente sob a luz da lua que aparecia por detrás das nuvens. Serafim estava atrás dela, metamorfoseado em sátiro. As ondas do mar batiam violentamente contra as pedras. O vento assumiu um timbre macio, enquanto Paulo mordia o pêssego dos olhos verdes de Luana, que se aproximava lentamente dele. As outras esculturas humanizadas se contorciam em luxúria, esfregando-se contra as folhagens. No momento exato em que Luana e Paulo iam se tocar, uma voz aguda o fez despertar do torpor em que se encontrava.

— Paulo! Paulo! Como você está se sentindo? Eu bati, mas você não atendeu. Como se passou muito tempo, nós entramos. A porta estava aberta e você, caído no chão. Deve ter batido a cabeça no balaústre da cama. Nós realmente bebemos muito ontem à noite, hein? — disse Luana, com um sorriso enigmático, e as mãos postas sobre os ombros de Paulo.

Ele abriu, finalmente, os olhos e sentiu uma súbita dor na cabeça. Estava tonto e suava muito, com o fôlego sobressaltado. Levou uma das mãos à testa e percebeu um pouco de sangue. Aquilo tudo de fato aconteceu?, pensou, antes de dizer, com certa dificuldade, que estava se sentindo bem, surpreendentemente bem.

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