A rebelde, irracional e canina Solidão

João Reis III
Coletivo Metanoia
Published in
5 min readOct 24, 2020
Ele quer reconquistá-la, mas o ciúme e alguns imprevistos atrapalham. E a Solidão não ajudou muito.

Solidão virou um animal doméstico, embora fosse uma ideia, uma abstração, ironia, uma acidez da minha fala. Eu disse que o nome da filhotinha deveria ser Solidão, porque eu sabia que Li terminaria o namoro no sábado. Ela olhou de um jeito duro, como se tivesse um uivo reprimido, contendo ódio. Ódio eu não merecia. Pegou a cadelinha no colo, parecendo fazer força, bateu a porta na minha cara, agora não por raiva, mas por entusiasmo pela solução que a filhote lhe trazia. Ela me aborta e dá vida à Solidão.

- Solidão! Solidão! Um grito do seu domingo à tarde. Eu escondido, vendo aquilo no fatídico dia seguinte. Era surreal. Eu mortificado de saudade, enquanto Li berrava de forma ridícula. Ruas vazias, uma janela no prédio da frente com as luzes acesas e aquele fotógrafo indiscreto, que rapidamente fechou as persianas para espiar pela janela.

Ela gritou de novo num agudo terrível, em vez de descer e pegar o animal que não sabia ainda qual o próprio nome. Teimosa. Eu não deveria fazer nada. Tinha que me controlar, tinha que conseguir. Ela já não queria me ver, imagina perceber esse vexame da fraqueza. Vergonhoso. Foi nessa hora que decidi ser forte. Vou reconquistá-la, sim! A Solidão será a justificativa.

A lâmpada do apartamento do fotógrafo se acendeu. Vi um outro homem com ele. Eles se abraçaram. As sombras dos seus rostos me impediram de ver se era uma despedida emocionada ou um beijo. Minha carência ofuscou, talvez. Estranhei, porque nesses dois meses e dezessete dias o vi só com aquele binóculo, luneta, lente gigante apontando para o flamboyant e os pássaros na lateral do edifício.

O homem então desceu, atravessou a rua, abriu o portão do prédio dela com a senha, voltou para pegar o cachorro, desistiu. Porque a Solidão é arisca. Ela disse que vai descer. Ele subiu. Antes que ela descesse, fui impulsivo e aproveitei para entrar. Deixei a Solidão. Fiquei na escada do primeiro andar. Ela estava muda, seus passos eram vagarosos, o elevador também. Imaginei que ela não estava gostando da Solidão, afinal poderia se lembrar de mim. E se a cachorrinha fugisse? Esse silêncio é o encontro com esse homem? Para qual apartamento ele foi? Senti um desespero, uma tristeza. Desisti de esperar. Saí me sentido mais tolo. A Solidão me olhava tola, sem entender. Ambos irracionais.

E-mail de amor, mensagem de amor, lixeira, deletei. Sangue nos olhos, vontade nos planos, me permiti. Só dessa vez. Fui novamente. Rua vazia, porque na segunda-feira as pessoas voltam apenas depois do expediente. Lembrei que a vizinha do quinto andar entraria logo mais com o bebê. Acelerei o passo, disse algo sobre a secura das folhas, sobre a sujeira que o flamboyant faz, a falta de flores logo nessa época, e a tarde está boa, e entrei, e elogiei o bebê dela, e agradeci. Fechei a porta e subi pelas escadas. Da vidraça lateral, vi o fotógrafo apontando a lente para os troncos e galhos secos. Foto feia, coitado. Minha carência ofusca até a estética, talvez. No terceiro andar, escutei uma discussão agressiva. O amigo do fotógrafo aqui no prédio de novo, saiu depressa e foi para o elevador. Fiquei aliviado por ele não ter vindo pela escada.

Mas ele tocou a campainha dela! Ela abriu rápido. Ficou calada e ele também. Era o flagrante que eu queria! Mas para quê? Seria ingenuidade eu argumentar qualquer coisa sobre eles, ou pedir que ela tivesse sido digna, ou reclamar em qualquer tom. Estava implícito, Li terminaria, se não achasse sentido no namoro.

Ele não entrou no apartamento dela. Uma pessoa desceu correndo, e o portão bateu forte. Trancado! Eu não teria como sair! O homem desceu veloz, e escutei:

- Solidão! De novo, não, Solidão! Cuidado.

Um tiro! Olhei pela vidraça da escada e vi que o fotógrafo fez o segundo disparo. Ninguém pareceu ferido. A luz se apagou e a persiana já estava fechada. Escutei um cochicho:

- Quieta, Solidão. Quietinha, quietinha.

Eu não poderia descer agora. Se eu pedisse para entrar no apartamento, seria humilhante. Se eu ficasse e o fugitivo me visse, seria perigoso. Se eu fosse visto, quando o vizinho voltasse, seria o novo alvo. Se a polícia chegasse, meu testemunho seria constrangedor. Que vergonha…

- Solidão!

Meu Deus, agora se a cadela vier? Desci um vão e fui para o elevador, teclei para o sexto andar. Não sei se o fotógrafo está olhando. Ele pode ter fugido. Cinco pessoas estão lá embaixo.

A viatura da polícia apareceu. Pensei em enviar um áudio para ela e dizer que fiquei preocupado, que escutei a notícia, e que a visita é uma forma de apoio, que a solidariedade em meio à catástrofe e ao pânico era o motivo de eu estar ali. Tive a certeza de que, se ela respondesse minha mensagem, eu entraria. A Solidão poderia brincar comigo. Se ela estivesse tensa e indiferente, quando a polícia saísse, eu desceria com um ar educado e heroico.

Foi melhor eu não tentar essa estratégia. Esperei o fim da ronda policial e os vizinhos se dispersarem.

Imaturo e irracional, um animal não substitui a companhia do amor verdadeiro, em especial no outono. Repeti essa frase tola três vezes para acreditar em mim. Quatro vezes, embora eu jamais tivesse coragem de dizer isso a ela. Estar na escada tiraria qualquer credibilidade da minha fala. Eu estava ali de novo na escada. Ridículo, mas vitorioso por ter vencido um pouco a vergonha.

Da vidraça, percebi que o fotógrafo estava com duas pessoas. Era ela! Era ela, meu Deus! O romance pareceu ser antigo, social. Eu, o único que não sabia disso. Ela vai voltar por aqui, ou alguém poderia descer pela escada. Ouvi pegadas de um cachorro. Vem pela escada?! Um grito de novo! — Solidão!… Mas ela está lá no outro prédio! Ela está no outro prédio, eu vi. Então, mal concluí essa lógica racional, quando a cadela pulou no meu colo, me lambeu. Li então chegou de imediato e deu um grito de susto ao me ver. Eu morri, ou acordei, ou saí do transe, ou entrei em transe. Não entendi nada. Gaguejei, sem voz, falei que a imaturidade e a irracionalidade não poderiam ser um substituto condizente com a veracidade amorosa do sentimento que me assoberba, e que o outono do flamboyant não seria o crepúsculo das cores no mundo, e sim a falta de solidariedade, que eu estava ali pela solidariedade e o pânico… Ou não falei nada? Achei complicado pensar, não sei.

Ela desatou a falar, cochichando. Pediu desculpas. Tinha mentido. Tem uma irmã gêmea, aquela do outro prédio, que é dependente química, que foi perseguida por traficantes, que de artista e amantes esses vizinhos não têm nada. E que vai se mudar dali, e que é hoje, e que quer morar comigo e que a Solidão vai conosco. Trêmulo, ainda gaguejando, aceitei, disse que hoje sim, pode ser sim.

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