Caneta Tinteiro

Fabricio Altran
Coletivo Metanoia
Published in
5 min readJan 7, 2021
Photo by Laura Chouette on Unsplash

Uma mulher é vítima de estupro no Brasil a cada 8 minutos. Não use saia curta, não saia na rua desacompanhada à noite, se vir um estranho vindo em sua direção, atravesse a rua…

Janaína sabia cada uma dessas informações de cor. Era grata por nunca ter acontecido nada de ruim consigo, mas vivia com o medo constante de que algum espreitador pudesse atacá-la a qualquer momento.

Aos 28 anos, era o alvo ideal para qualquer psicopata. Temia por sua vida todas as vezes que precisava descer o escadão que levava à sua casa ao desembarcar do ônibus. Fazia a longa descida rezando, por conta da iluminação que deveria ter sido arrumada meses atrás pela prefeitura, mas até agora nada.

Entrava no serviço todos os dias às 08:00, portanto precisava subir a escada às 5:00. Mas esse não era um grande desafio, já que muita gente fazia o mesmo trajeto, o que a confortava no caminho de ida. Mas na volta, a história era outra. A depender do tempo de atraso da condução, havia dias em que descia o escadão por volta de 22:00. O horário era perigosíssimo e Janaína carregava o celular à mão, com o número da emergência já discado, só aguardando o toque no botão verde.

Aquilo tudo era exaustivo. Durante as folgas, Janaína não tinha fôlego para nada a não ser dormir. Isso não era vida. Ansiava pelo dia em que poderia ser apenas um ser humano e não uma vítima em potencial.

O lado bom é que seu novo emprego pagava bem e pelas suas contas, em 5 anos teria condições de se mudar e viver em um lugar melhor. Aos 33 anos poderia finalmente viver sem medo de ter sua vida brutalizada por um homem qualquer.

Os anos na firma passaram, e Janaína, sempre recusando os convites que recebia para os happy hours com os colegas, se tornava cada vez mais uma sombra de si mesma. Reduziu seu horário de almoço para poder adiantar todo o serviço e sair o mais cedo possível do escritório. Evitava socializar com os colegas para não atrapalhar seu foco no trabalho e atrasar seu horário de saída.

Em casa, preenchia planilhas e espremia os gastos onde eram possíveis, para fazer render o dinheiro que ganhava e tentar adiantar seus planos de mudança. Aprendeu a investir e depois de muito sacrifício, em 3 anos tinha o capital necessário para dar entrada em um imóvel, sem que as parcelas do financiamento lhe apertassem demais o mês.

Por coincidência, a festa da firma estava marcada para a mesma semana em que comemoraria o negócio e teria direito à sua casa própria. Naquela sexta, o expediente seria até meio-dia, e depois os funcionários teriam um coquetel disponível para desfrutarem, antes de entrarem em recesso.

Seria quase como uma vingança pessoal sua, contra aqueles que poderiam a qualquer momento lhe fazer mal. Encomendou uma saia mais curta online para a ocasião, e fez uma maquiagem mais caprichada. Queria deixar de ser aquela funcionária padrão e finalmente ser notada como uma pessoa. Estava farta do apelido de robô que ouvira certos colegas cochichando outro dia.

Achou engraçado como a mudança na maquiagem e os sorrisos mais frequentes mudou o comportamento dos colegas. Depois de um tempo que entrou na empresa, os colegas pararam de tentar puxar assunto, ao notarem que ela tinha olhos apenas para o computador. No dia da festa, no entanto, bastou um batom e um sorriso nos lábios para que os elogios começassem a aparecer.

Embora desacostumada, achou revitalizante ter os olhos e a atenção dos colegas naquele dia. Sentia que aquilo era um renascimento, que finalmente poderia deixar o medo de lado e explorar uma nova vida com outras preocupações que não o horário de saída da empresa.

Durante a festa, o patrão presenteou os funcionários com uma caneta personalizada, do tipo tinteiro, mais como um enfeite do que como um objeto útil. Era a cara dele esse tipo de coisa, bem antiquado. Mas Janaína até achou graça do gesto. Aquilo seria seu troféu. O primeiro presente, do dia em que finalmente respirou aliviada.

Seu coração, agora mais leve, quase parou de repente, quando se deu conta de que entre uma dose e outra, já passava das 21 horas. Nenhum de seus colegas morava próximo de sua região e, para piorar, a bateria do celular havia acabado. Não teria nem como se dar ao luxo de chamar um Uber.

Pensou em pedir para um dos colegas chamar o carro, mas não se sentia próxima o suficiente de ninguém para isso. Como pode deixar sua guarda baixar tanto assim, justo agora que estava perto de renascer?

Sem perder tempo, foi ao ponto de ônibus rezando para que a condução chegasse logo. Por sorte, logo embarcou e, como trânsito livre, às 23:00 estava no escadão. Completamente só e na escuridão: de saia e maquiada. Três anos de cuidado jogados fora.

Na metade da descida, notou uma sombra crescendo. Pensou em voltar, mas não poderia ser nada de ruim. Poderia? Da sombra, surgiu um homem, que começou a subir as escadas, aparentemente alheio.

Com o coração batendo perto da boca, Janaína apressou-se nos degraus, e evitou contato visual com o sujeito. Queria sair dali o mais rápido possível, mas percebeu que seria impossível quando sentiu a mão do homem em sua cintura. A escuridão e a bebida tornavam difícil ver os movimentos do indivíduo, mas a sua percepção se aguçou na pele, enquanto ele a segurava firme pela cintura e a outra mão lhe comprimia o seio com força.

Não teve controle das lágrimas naquele momento e a força a abandonou junto com a bolsa que caiu no degrau abaixo. O homem a prensou contra a parede e forçou os ombros de Janaína para baixo. Enquanto deslizava, percebeu que o zíper da calça do homem já estava aberto, e as lágrimas ganharam volume.

Ajoelhada, a alça da bolsa fez contato com sua pele, e um lampejo de esperança passou por sua cabeça. Sem movimentos bruscos, tateou a alça, até conseguir chegar a abertura, onde prontamente encontrou o presente de seu chefe.

Por sorte, o homem que parecia estar embreagado, era forte, mas não estava muito atento, não percebeu quando Janaína estocou a ponta da caneta na lateral de sua barriga. Saltou para trás com um grito de dor, tapando a ferida com as mãos. Sem dar tempo de reação ao homem, ela fincou a caneta no corpo do homem mais duas, três, quatro vezes… até perder a conta.

Não sentiu remorso algum, pelo contrário. A sensação que lhe preenchia era de alívio. A partir daquele momento, não seria mais uma estatística ou um conjunto de regras do que não fazer para evitar virar uma vítima. Sentia-se como a esperança de toda mulher que desejasse sair à rua sem se preocupar com nada, apenas viver sua vida, afinal, já não precisava mais ter medo. Quem deveria temer eram eles.

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