Contato zero

Eveline Santos
Coletivo Metanoia
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4 min readNov 25, 2020

Catarina não sabia explicar bem o que tinha acontecido. Às 7:52, tinha uma vida, um companheiro, era amada. Às 8:16 era uma ex. Renato tinha ligado dizendo que queria encontrá-la num lugar especial, era urgente. Marcou no bar em que trocaram o primeiro beijo. Só poderia ser algo romântico. Renato era poeta, tinha esses rompantes. Mas ele apenas chegou, pediu uma cerveja e disse não estava mais dando certo. Ela não conseguiu argumentar. Entre um gole e outro, ele disse precisava ficar sozinho, se conhecer melhor, para a carreira de escritor deslanchar.

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“Enquanto eu estiver num relacionamento, eu não vou atingir meu potencial. Eu ainda te amo, mas você precisa me esquecer”, ele disse, já de pé, logo depois de virar o último golinho da bebida. Foi embora sem olhar para trás. Ela lamentou que as batatas fritas não tivessem chegado nesse meio tempo. Talvez ele tivesse ficado um pouco mais se houvesse algo para comer.

Catarina sabia o quanto era difícil arrumar um namorado. Detestava ter que viver com essa lacuna. Os olhares de pena. Os questionamentos nas festas de família. O desespero para arrumar um acompanhante para eventos. Quando encontrou Renato, sabia que não poderia falhar. Ela tinha acabado de se formar e estava entrando no primeiro emprego. Ter um relacionamento era essencial. Por isso, se certificou de fazer tudo certo. Estava sempre arrumada e perfumada. Garantia que seu apartamento tivesse sempre as comidinhas e bebidinhas que ele gostava. Comprou uma televisão maior e um home-theater para que pudessem ver filmes e séries com o que ele chamou de “um mínimo de qualidade”. Também era muito cuidadosa com os assuntos. Uma seleção de tudo que realmente interessava para o namorado. Além disso, jamais fazia cobranças. Mais do que isso, ela era alto-astral! Nesses dois anos, eles nunca tiveram uma briga.

Então, do nada, estava sozinha de novo. Ela queria ter ao menos perguntado onde tinha errado. Mas Renato ainda veio com um papo de contato zero. Como eles iam reatar se ela não pudesse falar com ele? Pelo menos, pensou, ia poder comer a batata frita. Uma porçãozinha não ia prejudicar muito. Compensava na academia no dia seguinte. O inferno não era ter que ser magra, o duro era ainda ter que ser “durinha”. Mas sua mãe fazia ginástica todos os dias e estava num casamento de 35 anos. Ela sabia que era importante a mulher não ser desleixada.

Já a caminho de casa, reconheceu a necessidade de traçar um plano de reconciliação. Mas calculou que seria preciso dar uma semana para ele ter a tal liberdade de se conhecer. Por isso, acertou o despertador para mais tarde. Não ia morrer se ficasse uns dias sem esticar o cabelo. Afinal, Renato não estaria lá para ver, né? Talvez pelo choque, talvez pelo cansaço, o fato é que esqueceu de chorar pelo fim do namoro. Apenas deitou e dormiu pesado.

Passou a tratar aquilo como um tempo no relacionamento. Até Renato cair em si. As lágrimas foram ficando para depois. Os primeiros sete dias foram apenas uma orgia de comédias no Netflix e longos happy hours com seus amigos “vazios” do trabalho. Por que mesmo Renato não suportava eles?

Na semana seguinte, ela teve muito trabalho recebendo os sobrinhos em casa. Agora dava para ter um monte de pré-adolescentes acampando na sala, fazendo bagunça, estourando pipoca de micro-ondas sabor bacon. Resistiu bem à tentação de entrar no Orkut e ver o que Renato estava postando. Só pensou nisso quanto já era domingo. Ela se felicitou por ter criado um perfil falso só para fuçar a página dele. Mas não tinha nada de novo. Ele devia estar tão mergulhado em si mesmo que não tinha tempo para redes sociais. Talvez fosse bom.

Dezoito dias tinham passado quando ela resolveu que ia começar a fazer caminhadas no bairro dele. Um jeitinho de forçar um encontro. Renato não apareceu. Mas ela descobriu que não gostava da academia. Preferia andar pela rua. Também pegou numa sarjeta um filhote de gato leve como uma pluma, cheio de micoses. De repente, ficar durinha não pareceu mais tão importante. Podia queimar sua cota de calorias brincando com o novo amigo.

E quando menos esperava, um mês tinha passado. Soube disso ao ver as contas do mês chegando. Era incrível, mas uma das faturas de cartão estava zerada. Não tinha gastado nada em 30 dias. As outras duas estavam bem mais baixas. A conta de energia reduzida pela metade! Foi quando o telefone tocou e o número tão desejado apareceu na tela. Era Renato. Ela ouviu os toques, mas não conseguiu esticar o braço para atender. Um tempinho depois, apareceu o símbolo de mensagem na secretaria eletrônica.

“Florzinha, eu preciso de você. Que saudades! A gente precisa conversar. Quando chegar em casa, me liga”.

Ela apertava o botão para ouvir de novo. Uma, duas, três vezes… Mas seus olhos voltavam para as contas em cima da mesa. Renato era um homem bonito, inteligente, sensível, um poeta… estava num patamar superior. Mas também era um cara de 30 anos que não parava em nenhum emprego e vivia num quartinho nos fundos da casa da mãe. Ela tinha esquecido como era não ter que pagar cada jantar, cada barzinho, cada táxi… Como era não ter que manter a casa abastecida de cervejas caras. Como era não ter que gastar uma fortuna para arrancar os pelos do corpo sistematicamente a cada 15 dias. Como seria não precisar mais pagar academia? Salão? Um novo futuro começou a desfilar pelo seu cérebro. Ela ia voltar para o curso de inglês. Ia viajar todo feriado. Podia financiar um apartamento.

Era uma vida nova, maravilhosa…. e só faltava uma coisa para começar. Pegou o celular, foi até a agenda, selecionou o contato de Renato e clicou: bloquear.

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Eveline Santos
Coletivo Metanoia

Ainda em busca da frase de impacto ideal para convencer as pessoas de que sou relevante e mereço ser amada.