Feliz aniversário

Suzane Morais
Coletivo Metanoia
Published in
5 min readNov 2, 2020

Dona Virgínia disse que ia fazer um jantar. E perto de chegar em casa, seu César ligou, confirmando que já estava vindo. Tomara que não tenha chamado ninguém, falou sondando quando atendi o telefone. Não sei de nada não, respondi. Ele tinha dito meio entre dentes, de manhãzinha, que não queria nada especial, depois que a patroa fez — sozinha — uma mesa farta, com bolo, torta, pão de queijo, tudo do bom e do melhor e ainda com um vasinho de hortênsias roxas no meio, que ela mesma plantou alguns meses atrás — a coisa mais linda. Mas, seu César fez a maior ingratidão: tomou o café, como de costume, e saiu sem comer nada, sem nem agradecer a esposa com um beijo sequer. Tadinha da dona patroa. É tão bonita, mas tem uns olhos tristes, rasando de água. Aliás, mal lembro da última vez em que seu César comemorou o próprio aniversário. Deus me livre que isso dá castigo. Isso é coisa que não se faz.

Eles dois tinham quase a mesma idade, mas acho que dona Virgínia não se importava nem um pouco com isso. Deixou os cabelos brancos e vestia uma camisola longa à noite, antes de se deitar, que seu César parecia que odiava. Confortável, ela dizia. Creio eu que ele não suportava era a leveza dela em aceitar a velhice. Vai ver ela tomou gosto pela ideia de não ter que parecer bonita. Porque os homens, meu filho, quando a mulher passa de uma certa idade, eles pensam que a gente é uma folha de seda amassada, jogada pra dentro de uma gaveta. Por falar nisso, lembrando agora, direitinho, até os hábitos da patroa mudaram nos últimos tempos. Ela já não queria sair mais, e ficava o dia inteiro conversando com as flores do quintal, que ela cuidava com tanto carinho. E dona Virgínia às vezes cismava de ser tão alegre, parecia mesmo aceitar as rugas no rosto, como quem colhe rosas num jardim. Mas seu César não. Ele dizia que não ia se entregar assim tão fácil. Dizia assim:

Tenho muito o que viver ainda.

Pedia, sempre, Minha querida, vamos nos arrumar? Vamos ao shopping? e dona Virgínia respondia em silêncio, com um sorriso calmo de negação. Eu conheço seu César desde menino. É turrão que só ele só. Isso é coisa de menino mimado, fazer o quê. Ele conheceu a dona patroa mocinha, na escola de jornalismo. Ela devia de ter uns dezoito anos, ele, uns vinte, por aí. O patrão disse que foi amor à primeira vista. Mas ela não gostou dele logo de cara. Ele teve que ralar muito pra conquistar ela, assim devagarinho. Depois de dois anos de namoro, eles se casaram, com a maior festança. Aí ele foi trabalhar num jornal famoso e ela virou professora de faculdade. Eles tinham uma vida boa, com uma briguinha de vez em quando, mas nada fora do normal. Eles precisavam era de ter tido um filho pra encher a casa de barulho. Muito silêncio faz mal. É que seu César não podia. Quando ele descobriu, ficou possesso. Começou a beber e virar noite na rua. Depois, acomodou a ideia.

Acontece que, nos últimos meses, piorou muito. Os dois passaram a brigar feio, quase todos os dias. Tinha dia que seu César não dormia em casa. Começou com uma vez na semana, mas, depois de um tempo, já quase não se via o doutor César na casa. Descobri, sem querer, quando fui limpar o escritório, uma mensagem de uma rapariga do serviço dele. Uma estagiária que dava pra ser filha dele! Vê se pode isso? A pequena se chamava Alice. Daí que ele inventou de gastar dinheiro em presente e comprar roupa nova, da moda, mas que não cabia muito bem nele. Dona Virgínia só olhava, de longe, sem nem se atrever a perguntou onde que ele tava indo aquela hora da madrugada. Acho que desistiu de perguntar. Seu César passou a estar sempre inquieto, procurando uma desculpa pra ficar fora de casa. A dona patroa já não argumentava mais, só dizia: Leva a chave.

Parecia que tudo na patroa incomodava seu César. Até o jeito dela andar, ele achava que era um andar de velha. Eu ficava revoltada, mas não podia falar nada, sabe como é, né? Eu não entendia o porquê dele agir assim feito doido. Parecia que já não era ele mesmo. Dona Virgínia, por sua vez, não questionava nada, nem pedia explicações. Fiquei surpresa quando insistiu pra fazer um jantar pra ele de comemoração. Seu César não gostou. Aposto que já tinha marcado com a tal da Alice de sair. Teve que cancelar. Eu já te disse, meu filho, homem quando embesta é isso aí. Só pode dar em tragédia. Um casamento de anos! É certo que ele pensou que a menina estagiária era assim um botão de flor pra desabrochar na mão dele.

Trabalhou até tarde, de propósito, com certeza, pra sair do escritório depois das dez horas da noite. Ligou dizendo que não estava se sentindo bem, como se tivesse a ponta de uma faca atravessada no estômago. Eu disse pra ele se acalmar que eu ia separar o omeprazol e dei uma bronca por tomar tanto café. Ataca a gastrite e dá nisso, mas, no fundo, pensei que era desculpa esfarrapada pra ir lá na casa da outra. Depois disso, eu só lembro que estava no meu quarto quando ouvi um barulho duro de algo caindo no chão. Desci as escadas correndo e vi seu César estrebuchando na sala, perto da mesa. Dona Virgínia, em pé, com um punhado de hortênsia nos braços, sorria como se nada tivesse acontecido. A caneca de costume quebrada em mil pedaços e o café espalhado por tudo quanto era lado. Outro líquido escuro escorria pela boca de seu César, que se contorcia em agonia. Eu paralisei de espanto e desmaiei. Acordei com o policial me sacudindo. Perguntei o que tinha acontecido e ele disse que era provável caso de envenenamento. Um tempo depois, confirmaram que foi uma toxina rara de flor. Se isso é tudo que eu sei? Só sei que juro que vi, antes de perder os sentidos, quando dona Virgínia se aproximou do corpo e disse: Feliz Aniversário!

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