Máscaras

Eveline Santos
Coletivo Metanoia
Published in
5 min readMar 1, 2021

Conforme o trem avançava pela floresta, ela avaliava os outros passageiros. A ideia do buquê havia sido muito boa. Olhavam para a massa de flores no seu colo e ignoravam a mala embaixo do banco. Apesar das máscaras, ou talvez por causa delas, todos falavam muito alto. Estavam empolgados. “Quem foi mesmo que disse que a vida não podia parar por causa da pandemia?”, pensou. O guia tentava passar informações, mas a coisa já havia desandado. Ninguém respeitava a regra das poltronas vagas. Crianças cruzavam o corredor com os rostos desprotegidos. As velhinhas das primeiras filas pediam o microfone: queriam fazer um karaokê.

Foto de Elisabeth Fossum no Pexels

“Foi o governador”, ela lembrou. “Ele disse que ‘turismo é alegria, alegria é saúde. Vamos ser felizes porque o vírus não resiste à felicidade’. Ah, aposto que ele ia adorar ver isso aqui”. Do último banco, Suzana sentia sua carga se movendo levemente, mas não havia com o que se preocupar. Com aquela barulheira toda, estava mais que segura. Não se deu conta de que sorria quando seus olhos encontraram os do homem sentado na outra ponta da fileira. Ele sorriu de volta. Com os olhos. Pelo menos foi o que ela achou. Tinha algo de magnético nele. Volta e meia, seus olhares se encontravam de novo. Tinha uns olhos verdes lindos. “A vida não pode parar, não é? Quem diria, estou paquerando!”, refletiu. Foi o rangido da velha ponte que a levou de volta para o mundo real. O trajeto estava chegando ao fim. Pelo menos para ela e seu pacote.

Escorregou ao tentar descer equilibrando a sacola num braço e o buquê no outro. Sentiu a cara enfiada no tecido branco e dois braços envolvendo seu corpo. Tinha sido salva no último minuto pelo estranho de olhos verdes. Sentiu que o rosto esquentou e agradeceu por estar de máscara. Sua avó diria que ela ficou “afogueada”. “As pessoas ainda se apaixonam, não é? Amor é alegria e alegria é saúde”. Sentindo que o conteúdo da mala já começava a se remexer, rumou ao santuário às vítimas da covid-19. Colocou as flores aos pés de Santa Rosana Aparecida e, de joelhos, fingiu que orava. A verdade é que, o tempo todo, só pensava: “sua morte foi em vão. Olhe ao redor. Ninguém se importa.”. Em meio ao agito de selfies dos visitantes, se esgueirou pela lateral e desceu por um barranco.

Sua passagem era popular, não estava na lista do guia. Ninguém ia dar pela sua falta no trem. Restava esperar até o entardecer. Se sentiu livre para tirar a máscara. A pior parte de ser imune era justamente nessas saídas, quando precisava fingir que não era imune. Até porque parecia um pouco paranoica, adotando cuidados que nem mesmo os vulneráveis seguiam à risca, como o uso da máscara e o distanciamento social. Algumas vezes até debochavam dela por ainda circular com uma garrafinha de álcool gel. Mas era a última vez. A única coisa que faltava para a comunidade era o que estava na sua mala. Depois que ela cruzasse o túnel de pedra, eles poderiam cortar os laços com a sociedade e esperar tranquilamente que todos fossem dizimados pelo vírus. Seria questão de tempo até poderem sair para repovoar o mundo, um mundo de imunes. Só não queriam correr o risco de voltar e não encontrar o conteúdo precioso que ela transportou até ali. Enquanto checava se estavam todos bem, pensou em como eram fundamentais para o frágil equilíbrio psicológico humano.

- Filhotinhos!

Suzana se contraiu. O trem já havia partido. Não deveria ter ninguém por ali. Era o paquera, que já ia se abaixando para brincar com os 9 filhotes de cachorros. Quatro machos e 5 fêmeas, de diferentes pais e mães — a única coisa que podiam fazer para garantir um mínimo de variabilidade genética. Não poderia haver futuro sem animais de estimação, era o que eles acreditavam. E quem poderia saber o que aconteceria com os cães abandonados em cidades repletas de humanos mortos? Aqueles nove eram o seguro para que a humanidade ainda tivesse amor incondicional no futuro.

- O que você está fazendo aqui? — ele perguntou.

- O que você está fazendo aqui? — ela rebateu.

- Bom, eu sei o que você está fazendo aqui. Então não vou perder tempo.

- O que você sabe?

- Eu vim explorar o túnel de pedra, fica uns quilômetros para cima. Um lugar irado, adrenalina total. Vou passar a noite lá.

- Isso não é proibido? Por causa da lei de pacificação dos morcegos e tudo mais?

- É você quem vai chamar a fiscalização para me prender? Tá na cara que você veio aqui só para desovar esses filhotes. Pode não ser crime de epidemia mas é crime ambiental.

- O que você acha que eu estou fazendo?

- Eu sei o que você vai fazer com eles. O que eu não sei é como você vai sair daqui depois e voltar para a cidade. Mas eu não me importo.

Pexels

Suzana registrou a ironia. Depois de tantos anos, quando finalmente relaxava um pouco, tinha que se interessar por um nerd metido à “Clarissa sabe-tudo”. Ele já estava bem perto do seu rosto. Se lembrou da emoção de ser beijada. Ainda tinha tempo. Era cedo. Mas beijou com um olho aberto, para não se descuidar dos bichinhos. Foi diferente. Não foi apenas físico. Os dois riram, conversaram, brincaram com os cachorros. Ela contou da vida difícil na cidade e que estava indo morar com os primos numa cabana ali perto. Eles iam abrir uma lanchonete para os turistas. Estava esperando que viessem buscá-la. Os cachorros eram para ajudar na caça, já que a renda seria pequena para se sustentarem. Tudo era mentira, mas ela falou tudo com sentimento, pensando em ganhar tempo para decidir o que fazer. Ele se comoveu, se abriu. Contou dos pais e irmãos mortos por covid — todos no mesmo dia — e como se recuperou milagrosamente. Agora era um andarilho em busca de emoções. Não tinha medo do vírus. Suzana fantasiou um futuro diferente no refúgio para além do túnel. Um futuro com um companheiro, talvez até filhos. Concluiu que tinha que conversar com os líderes da comunidade e precisava ser rápido.

- Você não quer ir para o túnel? Amanhã a gente se encontra aqui? Eu vou falar com meus primos. Você podia ficar com a gente uns dias, depois da sua aventura.

- Você acha? Você acha que eles topam? Eu quero te conhecer mais.

Ah, um material mais difícil do que homens imunes eram os homens sem medo de compromisso. Estava diante de uma pérola.

- Você vai para o túnel e eu converso com eles. Mas você precisa ir logo. Se te virem aqui, não vão gostar. Precisam de um tempo. Eu vou ficar bem.

Ela gravou na mente a imagem dele sobre os trilhos, mirando o horizonte. Ainda por cima era alto e forte. Não desses bombadinhos de academia. Um homem forte apenas. Tomada pela emoção, alcançou o celular na bolsa.

- Chefe, você tá descendo? Olha, desce quieto, sem barulho, e desce com o rifle e um atirador bom. Vocês vão encontrar um vetor no túnel.

--

--

Eveline Santos
Coletivo Metanoia

Ainda em busca da frase de impacto ideal para convencer as pessoas de que sou relevante e mereço ser amada.